Cinismo moderno

sloterdijk

“A velha social-democracia anunciara o slogan ‘saber é poder’ como judiciosa receita prática. Pretendia-se afirmar que uma pessoa devia aprender qualquer coisa como deve ser, para, mais tarde, vir a melhorar sua situação. O dito era ditado por uma fé pequeno-burguesa na escola. Essa fé está hoje em decomposição. (…) Inúmeros são os que já não estão dispostos a acreditar que começar por ‘aprender qualquer coisa’ levará mais tarde a melhorar sua situação. Neles, creio, cresce um pressentimento que no antigo kynismós era certeza: que uma pessoa tem de começar por ter uma vida melhor para depois poder vir a aprender qualquer coisa razoável. (…) No fundo, já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje resolve ‘os problemas de amanhã’.” (Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica. Tradução de Manuel Resende. Lisboa: Relógio D’Água, 2011. p. 14-15)

A citação acima é do prefácio do livro de Sloterdijk e já dá alguma noção do problema com que hoje nos deparamos e sobre o qual, ao longo do livro, o autor alemão discorre com propriedade: o do cinismo moderno (ou pós-moderno, como queiram).

Percebe-se que os novos homens querem antes o bem-estar e depois o saber, o qual ficou para segundo plano. Desprezam-se, portanto, em alguma medida, os professores de disciplinas, digamos, pouco pragmáticas, “sem retorno no mercado”.

Fica, assim, fácil compreender o imediatismo dos jovens, seu utilitarismo intransitivo, a necessidade, enfim, de prevalecer sobre o outro a qualquer custo, algo que Nietzsche já revelara há muito, e que se coaduna ironicamente com os super-homens de hoje, todos vazios de conteúdo, ainda que repletos de i-pods e i-pads.

Os cínicos de hoje, ao contrário de Diógenes (que sequer conhecem), consideram mais razoável ser um ignorante abastado do que um sábio paupérrimo a viver em um tonel. Primeiro – pensam eles – a consecução do status social e material, o olhar blasé de superioridade lançado de dentro de uma redoma qualquer na qual se imaginam imersos, seja ela automóvel de última geração, seja ela algo propriamente invisível a proteger-lhes o divino corpo esculpido em academia (ou pelo botox, se mais vetustos). Depois de ricos (ou, na verdade, nem tão ricos assim), se preciso for, reservam espaço para o antigo amor à sabedoria.

Ao cínico de hoje pouco importa a falsa consciência, isto é, pouco importa fingir que os outros lhe são importantes… Consideram o fingir uma vantagem quantificável. A falsa consciência de quem detém posições de poder, seja no Estado, seja em comitês de toda ordem, seja nos altos círculos da iniciativa privada, é, diz-nos Sloterdijk, uma “falsa consciência esclarecida”, algo de fato assustador. Disso concluo: este mundo não tem salvação.

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!

(A última linha do texto é verso do poema “Budismo moderno”, de Augusto dos Anjos.)
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