Em um dos clássicos da literatura de língua inglesa, Jonathan Swift escreve sobre um certo Lemuel Gulliver. “Sobre” não seria a preposição adequada, uma vez que a obra é escrita em primeira pessoa. Portanto, Swift não escreve sobre Gulliver, mas o incorpora. Sim, o estatuto do narrador é, aqui, secundário. Mas voltemos: Gulliver, todos sabem, em alguma medida deriva de “gullible”, e essa derivação talvez induza excessivamente a tratar o livro como uma simples brincadeira. Como algo em que somente uma pessoa crédula ou tola acreditaria. Não é esse o caso.
“As viagens de Gulliver” foi e é tomado como um livro para diversão infanto-juvenil (desse mal sofre também Moby-Dick), mas não há nada de infantil nele, a não ser superficialmente. Talvez a interpretação centrada nessa perspectiva infanto-debilóide-juvenil venha, principalmente, do fato de os leitores, preguiçosos, não avançarem no livro. Lêem sua primeira parte, tomam conhecimento dos lilliputianos e acham que leram Swift. Em verdade vos digo: é preciso passar pelas partes dois (Brobdingnag) e três (Laputa/Balnibarbi/Luggnagg/Glubbdurbdrib/Japão), para chegar ao que o livro tem de melhor. Somente na quarta parte, “Uma viagem ao país dos Houyhnhnms”, Swift revela uma ética própria, que alguns diriam misantrópica. Não concordo com alguns…
Na quarta parte do livro, Swift nos traz aquilo que de mais nobre há no caráter humano – ainda que tal nobreza requeira forte anteposição a tudo que seja humano. É que a humanidade de Swift é para poucos… O mundo ocidental de hoje (e o de ontem, e o de anteontem) centrado como é (e foi, e fora) naquilo que há de mais vil e abjeto, qual seja, a prevalência da mentalidade prática, da riqueza puramente material, repugna (sim, esse mundo ocidental repugna) a quem despreza a lógica utilitária e plutocrática que – ao fim e ao cabo daquilo que um dia chamamos de humanidade, no hic et nunc de um vigésimo primeiro século – vem repousar tal qual plácida coroa sobre a cabeça de homens modelares de toda uma geração de asnos, como são Jobs e Zuckerberg. Essa repugnância, saibam, não é aparente, não é ideal, não é platônica.
Voltem a Swift, crianças.