Adeus a “Cerromaior”, de Manuel da Fonseca

Abaixo, as primeiras páginas de um ensaio mais longo sobre o romance “Cerromaior”, de Manuel da Fonseca. O livro é de 1943, o ensaio, de 1999. São coisas velhas, portanto. Publico-o, em grande parte, como divertimento pessoal. Eu era outro, o texto era outro. E isso há doze anos apenas… Outro assunto: Sei que muitos leitores portugueses acorrem a este site (ou sítio, como queiram), a fim de ler outro texto sobre literatura portuguesa aqui presente, centrado em Alberto Caeiro. Se forem ler este aqui, faço recomendação semelhante à que fiz no outro: não há o que copiar. Sejamos realistas: um professor brasileiro não terá nada a ensinar a povo tão sábio.

A primeira preocupação deste ensaio é a de inserir a obra analisada em seu contexto histórico. O trabalho literário, como sabemos, responde, à sua maneira, a uma situação social qualquer, buscando, de certa forma, refletir esta ou aquela posição e, a princípio, contribuindo para a formação de um discurso ideológico. No caso do Neo-realismo português não é diferente. De acordo com Maria Luíza Ritzel Remédios, para citar uma influência próxima, “propunha a literatura portuguesa dos anos 40 que a arte não era apenas um prazer estéril, mas servia a um proveito essencial do homem, contribuindo para o desenvolvimento da consciência e melhoria da ordem social” (REMÉDIOS, p.14). Reduzindo-se o foco à obra de um escritor apenas, Manuel da Fonseca, pode-se dizer que, segundo Carlos Reis, “sem esforço se reconhecerá [a obra de Fonseca] como duplamente coerente: em primeiro lugar, pela inequívoca vinculação às fundamentais coordenadas ideológicas do movimento neo-realista; em segundo lugar, pela consistência interna que [a] caracteriza”. É o diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa que ensina, em seu comentário abrangente — às vezes enfadonho — do movimento Neo-realista português, que os tipos presentes na obra de Manuel da Fonseca, todos eles provenientes do Alentejo, contribuem para a caracterização de um cenário de conflitos, tensões e de situações econômicas e sociais. “Antes de mais” — para usar uma expressão tão ao gosto do mesmo Carlos Reis, que, por explicar tudo de maneira tão onisciente, parece ser um semideus da literatura portuguesa, deixando-nos quase sem o que dizer (a menos que apelemos a um verso também português: “Arre, estou farto de semideuses!”) —, antes de mais, dizíamos, gostaríamos de ressaltar que é dele, do senhor Reis, a idéia de que “o tempo exerce importante papel na obra de Fonseca, um tempo atravessado pelo labor da memória e por impulsos de retorno à infância”.

Feitas essas considerações iniciais, partamos para uma análise menor, talvez mais baixa, e por isso de acordo, pensamos, com a obra em questão. Em primeiro lugar, pensamos que uma análise séria não pode supervalorizar nem subvalorizar a obra que se propõe estudar. Assim, apesar de agir com neutralidade, não tentaremos esconder o juízo que fazemos de Cerromaior, algo que pretendemos elucidar abaixo.

Comecemos pelo título: Cerromaior. É um nome próprio, e assim sendo, pode ser qualquer coisa. É justamente em nosso país, o Brasil, que encontramos essa criatividade de unir duas palavras, ou pedaços de duas palavras, para formar um terceiro nome próprio, fato que espantou Umberto Eco. Cada um nomeia seus filhos, ou obras, como deseja. Ficamos sabendo, contudo, pelo prefácio à obra, escrito pelo próprio Manuel da Fonseca, que o título “fora sugerido pelo cerro do castelo novo, novo de mil anos, entenda-se, que é o chão de Santiago, vila onde a minha experiência encontrara, e recriava agora, as personagens. … o cerro de Santiago é de todos o mais alto. Daí o título: Cerromaior” (FONSECA, p.9). O porquê da união das duas palavras, cerro e maior, em uma só fica então explicado de maneira singela.

Continua o autor à mesma página: “Vila [de] que me propus tratar, focando capítulo a capítulo, todas as camadas sociais”. Questionamos essa declaração. O que são todas as camadas sociais para o autor? Talvez seja um pouco excessivo dizer-se que todas as camadas sociais são contempladas, pois o que a obra verdadeiramente faz é reduzir o mundo a duas realidades, portanto, a duas camadas sociais apenas: a dos patrões e a dos empregados.

Tendo sido escrito em 1943, durante o regime fascista português, o livro é uma espécie de peça de resistência. Serve, por isso, a um intuito fundamental à época, que é o de denunciar, pelas vias da ficção, um estado de coisas refratário às liberdades civis. Basta dizer que o governo português “esteve associado à Alemanha nazista, fornecendo-lhes minerais e permitindo o uso de seus territórios para operações radiofônicas” (NETTO, p.72). O modo pelo qual denuncia é que parece problemático.

Vejamos o que diz Carlos Reis acerca de Cerromaior: “Cerromaior representando uma peculiar interação de elementos importantes à semântica da ficção, como são a personagem, o espaço e o tempo, configura-se como momento de transição, de amadurecimento das estratégias discursivas do movimento neo-realista” (REIS, p.535). Pensamos ser tal comentário inegável, ainda que também um tanto quanto óbvio. Toda obra literária interessa pela mesma peculiar interação de elementos, já que personagem, espaço e tempo estão obrigatoriamente presentes em qualquer narrativa. Desconhecemos obra em que não haja interação entre personagem, espaço e tempo. Não conseguimos, por isso, apreender a real dimensão do comentário do mestre português, talvez uma tentativa de supervalorização do trabalho de Fonseca. Ainda à mesma página, diz-nos Reis que “seu título parece conferir ao espaço uma certa proeminência”. O título, então, demarca um território de “maioridade”. Do castelo se tem uma visão completa da vida do vilarejo, e é nesse castelo que habita o herói da história, Adriano. Perguntamo-nos, e disso Reis se esqueceu, em que medida a escolha do nome Adriano tem alguma relação, ainda que inversa, com o imperador romano, adotado por seu primo Trajano, que, ao morrer, lhe deixou o trono. O imperador romano construiu obras de importância e numerosos monumentos, embelezou Roma e seus arredores e — algo talvez importante à análise de cunho mimético — corrigiu abusos, suavizou a sorte dos escravos, moderou a perseguição aos cristãos. Será que o Adriano ficcional também não fez coisa semelhante aos camponeses, guardadas as devidas proporções?

Se voltarmos à organização da história — faremos agora um acompanhamento capítulo por capítulo da obra de Fonseca —, verificaremos que esta (a história) começa por um capítulo in media res. Nesse primeiro capítulo interagem principalmente duas personagens: Doninha e Adriano. Ambos encontram-se na cadeia, como prisioneiros. Há, contudo, uma hierarquia entre os dois, segundo a qual ficamos sabendo que Doninha agoniza, ao passo que Adriano tem liberdade para circular pelo presídio: “Era o único preso que tinha licença de andar pela cadeia” (FONSECA, p.24). Da janela, Adriano observa a rua, avista o amanuense Abílio Rocha e “sem que forçasse a memória, embalado pela voz de Abílio Rocha, Adriano foi recuando no tempo”. Instaura-se, portanto, uma analepse. Esse recuo, leva ao capítulo 2, no qual está dito ser de um ano o intervalo temporal entre o acontecido e o narrado. As personagens da família de Adriano são aqui introduzidas. Sabemos que Adriano ficara órfão e que as dívidas de seu pai haviam sido assumidas pelo tio, que passava a controlar a casa do herói (Adriano). Os custos referentes aos estudos de Adriano são cortados. Os filhos desse tio — primos de Adriano, portanto — começam a desfrutar de um poder sobre a propriedade da família. Configura-se então uma situação economicamente desfavorável a Adriano, ou seja, ele não tem poder para governar o que herdara, fato que produz (nele) uma individualidade arredia e isolada do mundo social circundante. Até mesmo a paixão pela prima Lena começa a lhe causar enfado. Adriano não tem profissão nem amor por mulher nenhuma. Articula-se então, em Adriano, a personalidade de um homem insatisfeito com o que o cerca e que, por isso, busca realizar-se pela interação com indivíduos economicamente inferiores e pertencentes a outro estrato social, cuja aptidão maior, para efeitos de trama, é a de provocar em Adriano o perfil de uma espécie de líder camponês. Ele se torna um elo entre duas realidades, uma espécie de salvador, comovido pela situação dramática por que passam os ceifeiros. História: “quanto aos assalariados rurais do Alentejo, a sua combatividade teceu uma larga teia de heroísmo” (NETTO, p. 23). Perguntamos: será que a cooptação de Adriano é realmente necessária? Será necessária a presença de um líder vindo da pequeno-burguesia? […]

BIBLIOGRAFIA

FONSECA, Manuel da. Cerromaior. Lisboa: Caminho, 1981.
NETTO, José Paulo. Portugal: do fascismo à revolução. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
REIS, Carlos. O discurso ideológico do neo-realismo português. Coimbra: Almedina, 1983.
REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. O romance português contemporâneo. Santa Maria: edições UFSM, 1986.
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2 respostas para Adeus a “Cerromaior”, de Manuel da Fonseca

  1. Diogo disse:

    Olá, professor

    Sou aluno seu do São Luis, já que poucos amigos meus gostam de algumas coisas eu gosto como cinema, literatura, vi aqui no seu blog que você gosta…. gostaria de indicações, pq adoro essa visão filosofica do mundo.

    De cinema meus filmes prediletos são:

    2001: Uma Odisséia No Espaço (Stanley Kubrick, 1968)
    Os Incompreendidos (François Truffaut, 1959)
    O Poderoso Chefão (Coppola, 1972, 74,90)
    Magnólia (PT Anderson, 1999)
    Clube da Luta (David Fincher, 1999)

    Livro: Meu predileto é o Senhor dos Anéis

    Já viu leu algum?

  2. Vinicius disse:

    Prezado Diogo,
    Você deve estar me confundindo com outro professor, pois não leciono no colégio indicado… De qualquer forma, gostei da sua lista de filmes. São todos bons, sem dúvida. Faço uma pequena restrição ao último apenas. Quanto ao livro citado, não li. Indico um filme do Kurosawa, “Rashomon”. Abraço, Vinicius.

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