O sintético caráter de Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”

Uma leitura tardia – atrasada, portanto – que decidi fazer foi a de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos. É lugar-comum considerar o autor alagoano mestre. Os períodos curtos, a concisão são características suas, sempre almejadas. Graciliano é o escritor do corte, da supressão. Nada pode ser melhor do que a clareza em poucas palavras, que, por isso, carregam-se de sentido, sentido quase-poético. A história factual do livro em questão todos conhecem. Portanto, não me atenho preferencialmente a ela. Também não exploro o livro em sua integridade, uma vez que não o finalizei e nem disponho de espaço para isso; restrinjo-me ao primeiro volume, intitulado “Viagens” e, neste, ao que o autor fala sobre, digamos, a arte de escrever e a natureza humana. Vejamos uma primeira citação:

“Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas excelentes por falta de liberdade – talvez ingênuo recurso de justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.” [ p. 21]

Vemos aqui, em poucas palavras, a confirmação de que nem sempre liberdade e bom trabalho literário combinam. A restrição temporal, a intolerância política e o espaço exíguo não são empecilhos absolutos. Outro aspecto importante do trecho é a analogia entre a gramática e o DOPS. Obviamente, nessa analogia, observa-se alguma diferença: os limites impostos pela sintaxe são limites respeitados voluntariamente pelo escritor, ao contrário dos limites políticos, verdadeiramente arbitrários.

A seguir, mais um trecho. Este relativo ao aspecto maquinal (e reduzido) do trabalho do escritor, bem como à necessidade de sobreviver (e de sustentar a família). Nesse contexto, justifica-se o lidar com textos alheios, quase sempre mal escritos. O citado aviltamento (o “acanalhar-se”)  é, sem dúvida, proveniente da constatação de que é preciso vender o que bem se sabe fazer. Rebaixamento do poeta.

“E como outros espíritos miúdos dependiam de nós, e era preciso calçá-los, vesti-los, alimentá-los, mandá-los ouvir cantigas e decorar feitos patrióticos, abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária, contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos engulhando produtos alheios. De alguma forma nos acanalhamos.” [p. 22]

Depois, então, o reconhecimento da própria insignificância, uma característica do trabalho do gênio, que, sempre crítico do que faz, se julga pequeno. A dificuldade de utilizar a primeira pessoa, para não passar de seu “tamanho ordinário”…  Encolher-se diante de quem realmente merece patentear-se (fina ironia). Tudo em nome de humildade digna, com uma pitada de desprezo.

“Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem; fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.” [p.24]

Ao discorrer sobre o romance Angústia diz:

“Certas passagens desse livro não me descontentavam, mas era preciso refazê-lo, suprimir repetições inúteis, eliminar pelo menos um terço dele. Necessário meter-me no interior, passar meses trancado, riscando linhas, condensando observações espalhadas.” [p. 27]

E:

“A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranqüilidade necessária para corrigir o livro.” [ p. 31]

Está clara, na primeira dessas duas passagens, a vocação ao corte, à supressão. Na segunda, a resignação à cadeia, a tentativa de adaptação rápida à nova realidade, sem prejuízo do trabalho de escritor. Contudo esse trabalho teria seus percalços:

“Sempre compusera lentamente: sucedia-me ficar diante da folha muitas horas, sem conseguir desvanecer a treva mental, buscando em vão agarrar algumas idéias, limpá-las, vesti-las; agora tudo piorava, findara até esse desejo de torturar-me para arrancar do interior nebuloso meia dúzia de linhas. Sentia-me indiferente e murcho, incapaz de vencer uma preguiça enorme subitamente aparecida, a considerar baldos todos os esforços.” [p. 74]

Aliada ao trabalho, uma primeira e firme concepção sobre a natureza humana:

“Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda, variável com as circunstâncias e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar.” [p. 83]

E uma segunda, mais sintética:

“Lá fora comportava-me automaticamente. A repartição, o despacho, o bonde, o horário, conversas bestas com indivíduos que se mexiam como se fossem puxados a cordões.” [p. 116]

No último trecho, a crítica ao homem-títere. No trecho anterior, os bretes a que estamos — todos — submetidos como homens. Dessas concepções, da profunda consciência do caráter dos homens, Graciliano faz sua literatura. E algumas animálias ainda acham que literatura é diversão.

Fonte: Ramos, Graciliano. Memórias do cárcere. Círculo do Livro (sob licença da Record), 1981.

Foto de Graciliano: Kurt Klagsbrunn

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