Wolfgang Iser – O processo da leitura

Wolfgang Iser (1926-2007)

Esta tradução tem dez anos, e, como já não sei mais onde está o original (um dia o acho em meio a meus arquivos), publico-a sem dar garantia de acerto ou de extremo capricho na revisão. Trata-se, na verdade, de uma tradução de um texto em inglês de autoria do alemão Wolfgang Iser. Optei por apresentar apenas as duas primeiras páginas do texto, que tem um total de 25, na expectativa de não infringir direitos autorais. Espero, na verdade, que o texto sirva como estímulo ao conhecimento da obra do teórico alemão em língua portuguesa. Ressalto que o trabalho de tradução foi feito a pedido da professora Maria da Glória Bordini. Resolvi postá-lo ao deparar-me há pouco – em meio à leitura da tradução de José Paulo Paes para o Tristram Shandy, de Sterne – com o trecho do autor irlandês citado por Iser.

 

Wolfgang Iser

O Processo da Leitura: Uma abordagem fenomenológica

Tradução: Vinicius Figueira

I

A teoria fenomenológica da arte confere plena ênfase à idéia de que, ao se considerar uma obra literária, deve-se levar em conta não só o texto em si, mas também, e em igual medida, as ações envolvidas na resposta a ele. Dessa forma, Roman Ingarden (1) confronta a estrutura do texto literário com os modos nos quais pode ser konkretisiert (concretizado). O texto, como tal, oferece diferentes “aspectos esquematizados” através dos quais o tema da obra pode vir à luz, mas o verdadeiro trazer a luz é um ato de konkretisation (2). Se assim é, a obra literária tem, então, dois pólos: um dos quais poderíamos denominar artístico (referente ao texto criado pelo autor), e outro, que chamaríamos de estético (referente à concretização realizada pelo leitor). Dessa polaridade segue-se que a obra literária não deve ser completamente idêntica ao texto nem à sua concretização, mas, isto sim, estar a meio caminho dessas duas possibilidades. A obra é mais do que o texto, pois este só adquire vida quando é concretizado, e, além disso, a concretização não é, de forma alguma, independente da disposição individual do leitor – embora seja influenciada pelos diferentes padrões do texto. A convergência entre o texto e o leitor traz a obra literária à existência. Tal convergência jamais pode ser precisamente localizada, mas sim permanecer sempre virtual, já que não deve ser identificada com a realidade do texto ou com a disposição individual do leitor.

É a virtualidade da obra que dá origem à sua natureza dinâmica, o que, por sua vez, é pré-condição para os efeitos que a obra suscita. À medida que o leitor faz uso das várias perspectivas que o texto oferece para relacionar os padrões aos “aspectos” e vice-versa, coloca a obra em movimento. É esse processo que resulta, em última análise, no despertar de reações de parte do leitor. Assim, a leitura faz com que a obra literária revele seu caráter inerentemente dinâmico. Que isso não é uma descoberta nova fica evidente a partir de referências feitas já nos primórdios do romance. Laurence Sterne observa em Tristram Shandy:

Nenhum autor que compreenda as justas fronteiras do decoro e da boa educação presumirá conhecer tudo. O respeito mais verdadeiro que podeis demonstrar pelo entendimento do leitor será dividir amigavelmente a tarefa com ele, deixando-o imaginar, por sua vez, tanto quanto imaginais vós mesmo. De minha parte, estou-lhe continuamente fazendo cortesias dessa espécie e empenhando-me o quanto posso em manter-lhe a imaginação tão ocupada quanto a minha própria. (3)

A concepção de Sterne acerca do texto literário é a de algo como uma arena em que o leitor e o autor participam de um jogo de imaginação. Se ao leitor fosse dada a história toda, e não lhe fosse deixado nada a fazer, sua imaginação nunca entraria em campo e o resultado seria o tédio que inevitavelmente surge quando tudo já está predeterminado. O texto literário deve, portanto, ser concebido de tal forma que envolva a imaginação do leitor na tarefa de resolver as coisas por conta própria, pois a leitura só é um prazer quando é ativa e criativa. Desse processo de criatividade o texto pode ou não ficar muito distante, o que nos permite dizer que o tédio e a tensão exagerada formam limites, que, se transpostos, farão com que o leitor abandone o campo de jogo.

Virginia Woolf, em seu estudo de Jane Austen, revela-nos o quanto a parte “não escrita” do texto estimula a participação criativa do leitor:

Jane Austen é, pois, uma senhora de emoção muito mais profunda do que aparenta. Estimula-nos a completar o que não está explícito. O que oferece é, aparentemente, insignificante, porém composto de algo que se expande na mente do leitor e que dota da mais duradoura forma de vida cenas que parecem triviais. É sempre o caráter que é enfatizado. As voltas e reviravoltas do diálogo nos mantêm sob o domínio do suspense. Nossa atenção divide-se entre o momento presente e o futuro. Aqui, efetivamente, nesta falta de acabamento e na inferioridade da história principal, estão todos os elementos da grandeza de Jane Austen. (4)

Os aspectos não escritos de cenas aparentemente triviais, bem como o diálogo velado presente nas “voltas e reviravoltas” não apenas atraem o leitor para a ação, mas também o levam a dar abrigo aos múltiplos delineamentos sugeridos pelas situações dadas, de modo que esses revestem-se de uma realidade própria. Porém, à medida que a imaginação do leitor anima esses delineamentos, eles, em contrapartida, influenciarão o efeito da parte escrita do texto. Assim começa todo um processo dinâmico: o texto escrito impõe certos limites a suas implicações não escritas, a fim de impedi-las de se tornarem obscurecidas e vagas, mas, ao mesmo tempo, tais implicações, resultantes da imaginação do leitor, colocam a situação dada contra um pano de fundo que a dota de uma significação muito maior do que aquela que poderia ter parecido possuir. Dessa forma, cenas triviais repentinamente tomam a forma de um “duradouro modo de vida”. O que constitui esse modo de vida jamais nos é dito, nem, muito menos, explicado no texto, embora seja, na verdade, o produto final da interação entre texto e leitor.

Notas
1. Cf. INGARDEN, Roman. Vom Erkennen des literarischen Kunstwerks. Tübingen, 1968, pp. 49 ss.
2. Para uma discussão detalhada desse termo, ver INGARDEN, Roman. Das literarische Kunstwerk. Tübingen, 1960, pp. 270 ss.
3. STERNE, Laurence. Tristram Shandy. London, 1956, p.79. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 136.
4. WOOLF, Virginia. The Common Reader. First Series: London, 1957, p. 174.
 
 
 
 

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