A vida na Disneylândia

Walt, em momento de definição de nosso futuro

Walt, em momento de definição de nosso futuro

Para além das vicissitudes da vida comum de professor, que, como sabemos, não é, em geral, espetacularmente bem remunerada, o profissional que se dedica ao estudo da língua e da cultura inglesas (ou norte-americana) precisa, no Brasil, estar pronto para ser um bom amigo de Mickey Mouse. Nada de Shakespeare, Conrad ou Melville, senhores. Mickey Mouse. 

Não posso e nem tenho condições de fazer, aqui, longo estudo sobre o tema. Atenho-me apenas aos ideais que governam certa classe média que, convencida de que suas necessidades são as necessidades do mundo todo, cria, direta ou indiretamente, oportunidades de trabalho para quem tenha resolvido estudar a sério alguma língua/cultura estrangeira, especialmente a inglesa e suas derivações.  

O quadro é o seguinte: estuda-se com razoável seriedade um idioma e sua literatura, em nível universitário, não raro estendendo o estudo à pós-graduação, para, depois, trabalhar quase que exclusivamente no ensino de línguas, já que literatura de fato não interessa ou pouco rende. Seja em cursos livres, seja em renomados institutos ou nas faculdades e universidades, o que predomina, porém, é a mentalidade Disney. Começa-se, então, a entender melhor que aqueles professores intelectualmente mais obtusos da universidade são os que gozam de maior sucesso material em todas as instâncias (afinal, eles souberam sempre atender ao Mercado, esse Deus bonzinho e sorridente). No ambiente de trabalho, há a presença constante de senhoras com muitas luzes nos cabelos e nenhuma no cérebro – senhoras maquiadas até a medula (a fim de renegar a todo custo o peso da idade em prol da aparência plasticamente aceitável, determinada por senhores a elas semelhantes e cuja inteligência é tanta que já lhes fugiu da cabeça para transmutar-se em gordura e dinheiro). São essas senhoras que, curiosamente, fazem as vezes, assim, como quem nada quer, de coordenadoras de cursos, isto é, são também as sábias condutoras de uma segunda classe, a dos professores. 

O discurso das indigitadas coordenadoras é, com muita freqüência, o seguinte: 1) nos cursos livres, é preciso preparar, com urgência, os adultos para o mundo dos negócios, e os adolescentes para a obrigatória visita à Flórida (Orlando, gente!), à Califórnia (onde tudo começou…) ou, alternativamente e por culpa do Melville, é claro, a algum local paradisíaco nos mares do Pacífico Sul. Afinal, nada há de mais importante no mundo do que business e diversão – ou seja: o binômio trabalho e recompensa, ideal de toda alma cristã, materializado integralmente right here, right now, para consumo imediato; 2) nas faculdades e universidades, é preciso instituir e idolatrar a vaca sagrada do “inglês instrumental”, hoje disfarçado sob outros nomes, para que todos disponham das “ferramentas” com que possam “operar no Mercado” (leia-se: aprender truques para bem explorar o bolso dos outros). 

Conclusão: a língua e a literatura estrangeiras stricto sensu não mais importam: são somente objeto de estudo de “especialistas” dos cursos de Letras, de sisudos senhores trancafiados em alguma obscura sala da academia. Detalhe importante: tal sala e tais senhores já não existem, mas, como nós, intelectuais, também gostamos de viver miticamente, fingimos sua existência. É a nossa Disneylândia.

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4 respostas para A vida na Disneylândia

  1. E viva o império da mediocridade.

    Estaremos sempre condenados à versão violenta da cigarra e da formiga? Numa visão pessimista, não. Sempre haverá usos medonhos dos impérios tipo disney para promover cigarras hipnóticas tocando as formigas em sua marcha de gado.

  2. Vinicius disse:

    Mas há boas cigarras por aí… Lembrei da composição do já falecido Itamar Assumpção (em seu raríssimo cd com Naná Vasconcelos): “Na próxima encarnação, não quero saber de barra, replay de formiga, não. Quero nascer cigarra.”

  3. Lorena disse:

    Admiro vc.. esse caminho que escolheu. É, de tudo que se pode sonhar ter, o que verdadeiramente não pode ser tirado.. a liberdade de questionar, o desejo de conhecer e o prazer de discernir – num mundo tão insensato – o que serve, o que é tolerável, o que insiste em causar espanto, o que repelir.

    .. “que inseto é esse em que teimam querer nos transformar” chama outra questão: sobrevivência!
    Chafurdar nesse caldo insosso… pura opção.

    Beem bom esse teu jeito de escrever: atilado, erudito no sentido da palavra, mordaz.. quando fazes uma critica, tu esculhamba! E pitadinhas de humor.. muuito bom. Desejo inspiração, Vinicius.. muita música e livros à tua volta e que na próxima nasças cigarra.

  4. Vinicius disse:

    Obrigado, Lorena! Não mereço tanto… Volte sempre.
    Um abraço,
    Vinicius

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