João Simões Lopes Neto e a miséria intelectual dos gaúchos

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Qualquer aluno de Literatura Brasileira que se interesse pelos escritores gaúchos terá, como uma espécie de obrigação, tomar conhecimento da obra de Simões Lopes, seja por questão lingüística, seja por questão cultural. Ao ler Simões Lopes Neto, até o gaúcho se sente, digamos, mais gaúcho, ingressando, porém, em um mundo de contradições.

Comecemos pela linguagem: o vocabulário presente na obra de Simões Lopes, campeiro, não é utilizado nos centros urbanos de hoje, exceto em alguns círculos restritos, como objeto de curiosidade acadêmica em alguns departamentos de Literatura, ou em livrarias/sebos mais atilados. Infelizmente, tal vocabulário resiste, também, no arremedo distante e esmaecido (portanto, já sem aquela aura de que nos falava o autor de A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução) apresentado no linguajar de gauchinhos de meia pataca, fantasiados com suas bombachas e alpargatas, que tomam chimarrão por uma espécie de dever religioso, como se tomassem o sangue de Cristo e que, não raro, reúnem-se para bater pé nos finais de semana – como se isso significasse manutenção de alguma tradição, e não teimosia aliada à necessidade burra de continuar incorrendo em erro histórico.

Culturalmente, o pelotense Simões Lopes põe-se contra (de forma involuntária e  quase 100 anos depois de sua morte, mal saberia ele) o romantismo homofóbico,  urbano e burro do pensamento [?] dos patrões de  CTGs e seus seguidores, todos eles afeitos à lógica escapista de que em Pelotas não há machos. – Não há pelotense que não tenha ouvido de seus conterrâneos gaúchos a pecha de ser oriundo de uma cidade por demais, digamos, afrescalhada.

Para resumir o quadro a quem não é do Rio Grande do Sul: a nobre e culta população do Pampa, seja ela açoriana, alemã ou italiana [aqui obviamente há ironia não só em “nobre” e “culta”, mas principalmente em “Pampa” – ironia que se explica facilmente quando se vai à Serra Gaúcha e se vê que os serranos, em sua maioria de origem italiana e alemã, declaram-se pampeanos e comedores de churrasco, ou quando se vai ao litoral norte do Estado e se percebe a mesma ideologia em homens que pastoreiam não o campo, mas o mar]  – a nobre e culta população do Pampa, dizia eu, criou o mito de que pelotense sempre foi sinônimo de não-gaúcho (para as questões históricas que levaram a esse mito é preciso um pouco mais de paciência do que disponho aqui). São, curiosamente, esses mesmos  gaúchos sectários, habitantes de um Pampa de papel, que, idolatram o pelotense Simões Lopes. Esses gaúchos de mierda, perdoem-me o termo, em sua estultícia, não percebem contradição alguma no desprezo que dispensam a Pelotas e o fato de o autor de “Contos Gauchescos” e “Lendas do Sul” ser resultado, para o bem ou para o mal, justamente da cultura da cidade que tanto desprezam [Duas observações: 1) Há evidente relação entre o histórico da cidade, mais precisamente da extinção da riqueza decorrente do “império do charque”, e as implicações desse quadro social na própria existência errante, e aos poucos depauperada, do próprio escritor João Simões Lopes Neto, que pertencia à família abastada… 2 ) A Pelotas de hoje é tão provinciana quanto sempre foi, assim como qualquer cidade do Rio Grande do Sul, inclusive  Porto Alegre. Os escritores gáuchos, também em geral  provincianos, já não conseguem, porém, como conseguiu Lopes Neto, passar do regional ao universal. Que pena…].

Continuando: Ficam também bravos esses gaúchos sem bolas – ou pelotas – quando vêem, hoje, programas humorísticos televisivos do centro do país aplicarem não só a Pelotas, mas a todo Rio Grande do Sul, a mesma lógica do desprezo homofóbico de que eles próprios sempre fizeram uso. Ou seja: estão esperneando depois de provar do próprio veneno. Coisa típica de homens delicados. Sinceramente, não sei onde está maior pobreza de espírito: se na mente obtusa da gauchada que vive sob o mito do gaúcho criado por estudantes secundaristas porto-alegrenses na metade do século XX [procure ler os historiadores gaúchos sérios, aqueles não comprometidos com os mass media] ou se no humor de quinta categoria de delicados cariocas. Centrados que estão, ambos os grupos, no uso que o cidadão faz de seu próprio corpo, esquecem-se de sua parte mais nobre, o cérebro, para deterem-se na análise psicológica e cultural do ânus. O pensamento que lhes vêm, então, só poderia ser mesmo diarréico. São, como disse, não só gaúchos (ou cariocas…) de mierda, mas que dela se comprazem.

Toda essa escatologia me ocorre no momento em que (re)vejo a literatura (?) gaúcha rebaixar-se ainda mais,  desta feita tendo como mote principal uma ação de dano moral de midiática escritora (um oxímoro) contra acerbo crítico amador (pleonasmo) que ousou fazer trocadilho entre seu (dela) sobrenome polonês e uma rídicula, permitam-me a expressão,  “alcunha vaginal”. Como se a vagina não fosse algo a ser para sempre exaltado, ela que é a mãe, veículo da vida, além de ídolo recôndito de todos nós, homens…  

Enfim, diante do prato ruim que nos serviram, pergunto: Vai uma pitada de elegância gaúcha à moda Simões Lopes aí?

Contrabandista (João Simões Lopes Neto)

Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira; à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas…; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada.

Conhecia as querências, pelo faro; aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante o chape-chape, noutro ponto,  o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo. 

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12 respostas para João Simões Lopes Neto e a miséria intelectual dos gaúchos

  1. Alexandre Marcant disse:

    Muito bom!!! “Dá-le” Vinícius!!!
    Só não conheço o tal trocadilho, o que aliás aqui não importa!

  2. Vinicius disse:

    Valeu, Alexandre! Olha, tchê, apesar de não importar, informo: o trocadilho em questão faz referência a uma crítica à autora de “A casa das sete mulheres”, mais precisamente a seu sobrenome.

  3. Rafael disse:

    Vinícius, concordo, em parte com teu texto. Sou Porto Alegrense, morador de Pelotas e digo que gosto muito dessa cidade. Temos, sim muita cultura oriunda daqui. O problema é que hoje em dia só aparece quem é apadrinhado. Eu tenho um blog sobre a cidade, onde coloco pensamentos meus sobre os problemas e as coisas boas da cidade. Gostei bastente do teu texto. Vê se gosta do meu blog: http://pelotaspublica.wordpress.com/

  4. Vinicius disse:

    Obrigado pelo comentário, Rafael. Você diz concordar “em parte” com meu texto. Gostaria, porém, de conhecer a parte com que você não concorda… O leitor João Luís também fez aqui um comentário em que essa concordância parcial é exaltada (importante: o comentário foi colocado por ele, inadvertidamente, creio eu, sob outro “post” desta página [mais precisamente em “Por que escrever na Internet?”]). Eu, sinceramente, ao aproximar-se o 20 de setembro, começo a sentir uma certa vontade de ir para a Sibéria, e de passar uma temporada naquela “Casa dos mortos” de que nos falava um velho escritor russo, pois nada pode ser pior do que Carnaval de gaúcho, com direito a fantasias e adereços, bombachas e lencinhos, além, é claro, do agradável perfume de bosta de cavalo… Mas voltando a Pelotas, estive em sua página e achei a iniciativa interessante. Pequenas iniciativas como a sua já refletem uma mentalidade mais arejada, menos “asfáltica”, digamos, do que a média da cidade. Mas trata-se de um trabalho de longo prazo. Abraço, Vinicius.

  5. rodrigo vaz soares disse:

    Excelente texto, meus parabéns! Ainda bem que alguém tem a inteligência – e a coragem – de falar a verdade por essas bandas virtuais.

  6. Vinicius disse:

    Muchas gracias, Rodrigo. Volte sempre!
    Abraço,
    Vinicius

  7. Eduarda disse:

    O que você já escreveu, digo… obra literária, que pode ser considerada literatura, com características do tempo atual em que vive com pensamentos e conflitos seus e da sociedade em geral?

  8. Vinicius disse:

    Meus conflitos não dariam um romance, Eduarda. Já os “conflitos da sociedade em geral”, como você diz, constituem tema ilimitado, dominado apenas por sábios e ingênuos. Deles me abstenho, portanto. Um abraço. Vinicius

  9. Andréia disse:

    Olá Vinícius
    Gostaria de saber qual o motivo de tanta mágoa em teu texto? Te sente ofendido por ter nascido gaúcho ou por aqui conviver? Achei que foste muito radical no teu péssimo vocabulário contra um povo, em plena época onde precisamos ter cuidado com as besteiras que falamos. Procure não generalizar teus escritos. Achei triste ver que achas que até teu nome é comum por causa da língua portuguesa, nossa que péssimo astral e que rejeição apresentas em teus escritos. Desculpe-me, mas assim como escreveste o que achou importante, também achei que deveria escrever o que senti ao conhecer teu blog.
    Um abraço!
    Andréia

  10. Vinicius disse:

    Olá, Andréia

    Não há mágoa em meu texto… Você está equivocada. Também não me sinto ofendido por ter nascido gaúcho. Se você julga meu vocabulário péssimo, nada posso fazer. Sobre o meu nome: se eu não gostasse dele, não o usaria. Enfim, suas opiniões, ainda que equivocadas, e vazadas em um português colegial, revelador, para o bem e para o mal, do alcance de seu pensamento, estão registradas, Andréia.
    Espero que você mantenha a virtude feminina da doçura. Pude percebê-la no abraço que você me remeteu ao final da mensagem, ao qual retribuo, respeitosamente.

    Vinicius

  11. Mario Campeiro dos Pampas Paulista disse:

    Tenho uma opinião sobre gaúchos, paulistas, mineiros e cariocas:
    -Gaúcho acha que o mundo acaba nas fronteiras do Rio Grande do Sul;
    -Paulista acha que só em São Paulo se trabalha, se produz e se carrega o Brasil nas costas;
    -Mineiro acha que tudo que é de Minas é melhor que de outros lugares;
    -Carioca acha que tem direitos adicionais sobre o Brasil (vide os royalties do pré-sal).
    Eu sou paulista, meu pai era gaúcho. Fui ao Rio Grande do Sul, e na Praia de Torres a gauchada tomava chimarrão entre um mergulho e outro no mar. Êta mal gosto! Fiquei nas minhas latinhas. Áliás gaúcho é o cara dos pampas que cria bois. Os outros são riograndinos do sul.
    Mário/SP

  12. Vinicius disse:

    Pois é, Mário… Há alguma razão em suas observações, embora haja exceções. Chimarrão na beira da praia: tem que gostar mesmo. Gaúcho não indica “nacionalidade” ou coisa que o valha. Você está certo. Obrigado pela visita.
    Saudações,
    Vinicius

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