A história dos idiotas e os idiotas da História

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Estive pensando, de maneira simplificada, mas não simplória, sobre a chamada civilização ocidental e seus rebentos atuais, classificando-os, grosso modo, em duas grandes categorias: a dos metafísicos e a dos revolucionários. Os primeiros insistem em divagar sobre a origem, sobre a ontologia de tudo e de todos, perdendo-se, não raro, em especulações vãs e muitas vezes tolas – em uma vida de pouca ação; os segundos, ao contrário, passam por cima dessa ontologia, apesar de em certa medida reconhecê-la, optando, contudo, pela imanência, pela “análise profunda” das condições sociais e históricas sob as quais vivemos, satisfazendo-se, também não raro, mais com o discurso revolucionário do que com a ação.

À categoria dos metafísicos chamarei de “idiotas do além”; à categoria dos revolucionários, de “idiotas do aquém”. É claro que o uso do termo “idiota” é ofensivo (e histriônico). Trata-se de um recurso retórico que fará com que o leitor, com sorte, chegue ao fim do texto, com aquela necessidade de certificar-se de que se enquadra ou não, de acordo com seu nível de masoquismo, em uma das categorias criadas. Caso não se enquadre, achará que o autor do artigo não pensou em uma terceira ou quarta categorias possíveis (sendo esta terceira categoria, quem sabe, uma síntese das anteriores; a quarta, uma categoria dedicada àqueles que somente escrevem e nada fazem, como é o caso do próprio autor). As possibilidades de reação do leitor são várias, mas minha intenção é tão somente a de mostrar, com palavras, que a vida que levamos não passa, em geral, de palavras e pouca ação, desde que tenhamos aquele conforto material de que já falava Agostinho (vejam bem: retiro o termo “Santo” para não ferir os revolucionários. Mas ao dizer que o retiro, escrevo-o, e, então, adulo os metafísicos. Sim, eu estudei dialética).

Os idiotas do além, ou metafísicos, não se importam com o cotidiano, com coisas frívolas como salários e trabalho (há ironia aqui na palavra “frívolas”, mas resolvi não marcá-la com itálico ou aspas. Quem percebe a ironia, percebe; quem não percebe, não percebe. A burrice é ampla e irrestrita. A inteligência, também).  Voltando: os idiotas do além, exceção feita talvez aos franciscanos, possuem outra característica: não abdicam jamais de seu conforto. No calor: ar-condicionado; No frio: lareira; Fome: carne; Sede: vinho. Tudo, em geral, com a bênção de Cristo [sotaque de padre italiano em “Cristo”, please]. A paz de espírito desses senhores implica, como a de todos os homens, bem-estar estômaco-intestinal (ai!), ainda que os mais abnegados sejam mais parcimoniosos.

Algo que os metafísicos, ou idiotas do além, conhecem mas fazem questão de ignorar é a História (com H maiúsculo, indicando aqui a História da humanidade e também a tentativa de recontá-la, a historiografia). Poder-se-ia dizer que malgrado seu, isto é, deles, esses senhores têm, contudo, uma História, pois não há dúvida de que ela exista, independentemente de seu (dela) reconhecimento. Recapitulando: os metafísicos têm mesmo uma história, que um autor revolucionário poderia chamar de “História dos idiotas do além” ou, mais simplificadamente, “História dos idiotas”. Para ler sobre ela, consulte, principalmente, livros cuja temática seja religião, mitologia, filosofia e liberalismo econômico, não necessariamente nessa ordem.

Os idiotas do aquém, ou revolucionários, pouco ligam ao lado de lá, isto é, ao mundo metafísico. Metafísica seria imaginação, ficção, mito. Por outro lado, temas como “salário” e “emprego” lhes são deveras importantes e atuam, em sua (a deles) imanente lógica, da mesma forma que o além atua na mente dos metafísicos. Ou seja: mudam-se os deuses, mas as moscas são as mesmas. Em geral, as moscas do aquém, digo, os revolucionários, costumam uniformizar a realidade (No Brasil pré-Lula presidente, por exemplo, era comum que nos círculos revolucionários [na verdade “retângulos revolucionários”, pois as mesas de bar são em geral retangulares] os idiotas do aquém chamassem uns aos outros de “companheiro”. Todos eram companheiros de todos. A fraternidade era universal, irmãos [ler com sotaque de padre italiano esta última frase]). Essa uniformização visa, principalmente, à criação de um substrato humano comum, a quem os santos revolucionários sentem-se no dever de abrir os olhos, ou seja, mostrar o caminho, a verdade e a vida [ler esses três últimos termos também com sotaque de padre italiano]. Converse com o pessoal do PSOL, PSTU e do antigo PT para entender o espírito da coisa. Outra marca dos idiotas do aquém, ou revolucionários, é o ressentimento (ver Nietzsche, o filósofo das multidões). Ressentem-se, primordialmente, do conforto material de uns poucos, da “burguesia”. A inveja desse conforto material quase sempre vem à tona em discursos fortes e professorais acompanhados de dois tiques nervosos opostos e bem humanos: (1) uma certa baba a correr pelos cantos da boca, aliviada a seguir por (2) um olhar carinhoso e condescendente a quem desconheça o outubro de 1917. Curiosamente, contudo, quando alcançam o poder,  os babões carinhosos repetem exatamente o comportamento daqueles que antes criticavam, ou seja, passam a achar que têm pouco, que merecem mais, que precisam de mais, mais carros, mais e melhores casas, mais roupas, mais comida – tudo para guiar o povo pelo bom caminho, mentes privilegiadas que são.

Os revolucionários, ou idiotas do aquém, desprezam, portanto, o que não existe. Assim, para eles (exceção feita aos padres marxistas),  o mundo metafísico é só imaginação, e a religião, ópio (se fosse ópio seria bom, mas os revolucionários não sabem rir de si mesmos). Para eles, só vale aquilo que se deu na História, no tempo. Como de fato não sabem se há ou não há algo no além-túmulo, eles seriam mais honestos, penso eu,  se reconhecessem esse não-saber (algo que só fazem em momentos mais difíceis, como os da morte de um familiar ou da busca de votos para cargos eletivos). Sendo nossos revolucionários [ironia em “nossos”] partidários implacáveis da História, ao ponto de nutrirem uma paixão cega e idiota por ela, poderíamos dizer que são “Idiotas da História”.

Assim, chego aonde queria, que era tão-somente uma justificativa para a frase que dá título a este artigo, frase-síntese (que carrego comigo há algum tempo) daquilo que vejo com constância no lugar em que vivo. Pelos últimos epítetos conferidos às duas categorias que criei, ambos em negrito aí acima, obtenho, então, “A história dos idiotas e os idiotas da História” – sem ofensa pessoal, ressalte-se, a metafísicos e a revolucionários. Respeitosamente, penso ter contribuído, aqui, para juntar o joio ao trigo, se é que me entendem. Ofereço-vos, para  encerrar, uma  frase de Mark Twain (que cito de memória e com direito a erros): “Quando sou apresentado a alguém, pouco me importa sua origem, cor ou classe social. Basta-me saber que é um ser humano: nada pode ser pior.”

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4 respostas para A história dos idiotas e os idiotas da História

  1. Alexandre Marcant disse:

    Vinícius, me parece que cada vez mais aprimoras o teu “espaço” e o que é melhor, o teu texto (estilo, etc).
    Gostei da foto da tal de Ermida, mas não lembro dela, digo isto porque gostaria de me lembrar, já que “viajo” muito nesta coisa da imagem e dos sentimentos associados, e toda aquela região sul me atrai muito.
    Abraço.

  2. Vinicius disse:

    Valeu, Ale. A “Ermida” fica logo depois da ponte do São Gonçalo, já em território riograndino (pelo Google Earth dá para fazer o trajeto bem razoavelmente. Coloquei as coordenadas junto à foto 2 da apresentação da página). Um dia vamos ter de pegar o carro e andar os 260 km até lá, rumo ao Uruguay (mais uns 300 km de reta, só para comprar uns tragos e otras cositas más). Bom, mas que fique claro que minha “memória uruguaia” é bem anterior à febre dos free-shops. Hoje tem muito turista-mala por lá. Eu tenho vontade de ir até a Colônia do Sacramento, mas essa é outra história. Abração, Vinicius.

  3. Paulo Nunes disse:

    Vinícius, muito bom o texto. Achei contundente e interessante, além de definir uma posição clara sobre as ideias expostas (com alguma proteção é claro!), coisa rara hoje em dia!
    Então Ermida é o nome “quase metafísico” daquela casa no caminho da praia? (rsrs) Não sei se chega a ser um templo, mas definitivamente fica em um lugar diferenciado!
    Abraço.

  4. Vinicius disse:

    Fala, Paulo! É um nome “‘quase metafísico'”, mas, também, “quase revolucionário” (considerando que o mundinho em que vivemos precisa da reflexão e das reviravoltas produzidas por nossa razão e por nossa imaginação criadora. Em tempo: tanto a razão, quanto a imaginação são meros frutos de nossos hemisférios cerebrais. Será que dá para confiar neles?). Por falar em “quase”, é bom lembrar que nossos códigos éticos/morais são todos baseados em argumentos “quase lógicos”, isto é, não são certeiros como a matemática, mas presunções. O tal “imperativo categórico” até me serve como orientação de vida, mas o problema é que também serve aos mais renomados pilantras, sejam eles das profissões liberais ou públicas, todos santos

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