Duas certas (e errôneas) traduções de Frye

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Traduzir é tarefa ingrata. O tradutor está, queira-se ou não, sempre sob certo julgamento. Por mais bem feita que seja a tradução, um só erro basta para que críticos mais agudos reclamem muito daquilo que se traduziu e desconsiderem o restante do trabalho. Um dia desses, deparei-me com uma tradução de Northrop Frye, feita pelo professor Flávio Aguiar. Como eu conhecia o original de Frye e, mais do que isso, o havia traduzido em trabalho de conclusão de curso na Ufrgs no ano de 1995, não pude deixar de ficar curioso em cotejar o que traduzira com o  que  Aguiar agora apresentava (a primeira edição do trabalho de tradução do professor é de 2004). É certo que meu  texto, uma simples  tentativa de aluno de graduação, ou está bastante empoeirado em alguma estante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ou virou folha de rascunho para análises geniais e pós-modernas de professoras feministas, tamanho o interesse que o assunto traduzido desperta na nobre comunidade literária gaúcha. É certo também que meu trabalho, assim como o do professor,  não está isento de erros.

O texto de que falo chama-se “The Great Code – The Bible and Literature”, de Northrop Frye  (Harcourt B. Jovanovich, 1982) . A tradução brasileira aqui apresentada é de Flávio Aguiar (Código dos códigos. A Bíblia e a literatura. Boitempo, 2ed., 2006). Reproduzo, a seguir, apenas o primeiro parágrafo do texto, por um motivo especial: a primeira oração da tradução de Aguiar (sublinhada, abaixo) é deveras problemática. Descuido ou problema de revisão, o fato é que simplesmente não podemos compreendê-la. Em se tratando de um livro sério como este, dar início ao texto com uma frase truncada e carente de sentido acaba por ser um convite a não ler.

Mas passemos ao objeto desta mensagem que é , afinal, cotejar traduções… Como não quero aqui fazer o papel de quem apenas atira pedras na vidraça alheia, apresento também a minha velha tradução da década de 1990. Prestem atenção às divergências dos tradutores e, principalmente, aos erros que ambos cometem. Eu mesmo, hoje, quebraria minha própria vidraça em vários pontos.

Abaixo, tem-se o primeiro parágrafo do texto de Frye, dividido em seis partes e de acordo com o seguinte esquema gráfico:

Texto em preto: Original de Frye

Texto em azul: Tradução de Flávio Aguiar (2004)

Texto em vermelho: Tradução de Vinicius Figueira  (1995)

Texto em verde: não está aqui, mas um dia virá pela mão de um bom e abnegado cristão ou  ateu, e será melhor do que os dois anteriores.

 

Northrop Frye: Capítulo de abertura do livro The Great Code e suas traduções brasileiras

 Frye  1. A sacred book is normally written with at least the concentration of poetry, so that, like poetry, it is closely involved with the conditions of its language.

 Aguiar  1. Um livro sagrado é normalmente se escrito com, ao menos, a concentração da poesia; como a poesia, portanto, ele está intimamente relacionado com as condições de sua linguagem.

 Figueira  1. Um livro sagrado é normalmente escrito, pelo menos, com a mesma concentração dedicada à poesia, de modo que, como a poesia, ele está intimamente ligado às peculiaridades de sua língua.

 

2. The Koran, for instance, is so interwoven with the special characteristics of the Arabic language that in practice Arabic has had to go everywhere the Islamic religion has gone.

 2. O Corão, por exemplo, está tão entrelaçado com as características próprias da linguagem árabe que, na prática, o árabe teve de acompanhar a religião islâmica onde quer que ela fosse. 

2. O Alcorão, por exemplo, está tão atrelado às características especiais da língua árabe que esta tem de acompanhar, na prática, a religião islâmica onde quer que ela vá.

 

3. Jewish commentary and scholarship, whether Talmudic or Kabbalistic in direction, have always, inevitably, dealt with the purely linguistic features of the Hebrew text of the Old Testament.

 3. Os eruditos e comentadores judaicos, de sentido talmúdico ou de sentido cabalístico, tiveram de lidar inevitavelmente e sempre com as feições puramente lingüísticas do texto em hebraico que é o Antigo Testamento. 

3. Os tratados e a erudição judaicos, sejam de orientação talmúdica ou cabalística, sempre ocupam-se, inevitavelmente, das características puramente lingüísticas do texto hebraico do Velho Testamento.

 

4. In contrast, while Christian scholarship is naturally no less aware of the importance of language, Christianity as a religion has been from the beginning dependent on translation.

 4. Entretanto, embora a erudição cristã não seja menos consciente da importância da linguagem, enquanto religião o cristianismo sempre dependeu mais da tradução.

 4. De maneira contrastiva, embora a erudição cristã naturalmente não seja menos ciente da importância da língua, o cristianismo, enquanto religião, desde o começo depende da tradução.

 

5. The New Testament was written in a koine Greek unlikely to have been the native language of its authors, and, whatever the degree of familiarity of those authors with Hebrew, they tended to make more use of the Septuagint Greek translation in referring to the Old Testament.

 5. O Novo Testamento foi escrito num grego koine, que parecia não ser a língua nativa dos seus autores. Qualquer que fosse a familiaridade desses autores com o hebraico, eles preferiam usar em suas referências ao Antigo Testamento a tradução em grego da Septuaginta.

 5. O Novo Testamento foi escrito em grego koine, que não foi, provavelmente, a língua materna de seus autores, e, qualquer que tenha sido o grau de familiaridade desses autores com o hebraico, eles tiveram a tendência de fazer maior uso da Vulgata dos Setenta ou Bíblia dos Septuagenta no que se refere ao Velho Testamento.

 

6. The Jews, on the evidence of the Letter of Aristeas, at first greeted the Septuagint with great en­thusiasm, but the use made of it by Christianity tended to push them back to a renewed emphasis on the Hebrew original.

 6. Baseados na carta de Aristeu, os judeus num primeiro momento recebeream (sic) a Septuaginta com entusiasmo. Mas o uso desta pelo cristianismo levou-os a voltar-se novamente para os originais em hebraico.

 6. Os judeus, baseados na evidência da carta de Aristeas, inicialmente acolheram a Vulgata dos Setenta ou Bíblia dos Septuagenta com grande entusiasmo, mas o uso desta pelo cristianismo fez com que eles (os judeus) se voltassem, com ênfase renovada, ao original hebraico.

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8 respostas para Duas certas (e errôneas) traduções de Frye

  1. Roberto disse:

    Vinicius, é verdade o que dizes da ingrata tarefa do tradutor, como naquela comparação com o goleiro: é fundamental, mas só é lembrado quando o time leva goleada (ou quando a evita, o que também está associado ao desastre). Ou seja, o bom tradutor de um original bom é como o bom goleiro de um time bom: pouco será lembrado.

    Quanto ao Flávio Aguiar… Já tive que fazer muitas versões de textos dele, e confesso que me senti como um goleiro esforçado com uma defesa do tipo “peneira.” Não sei se ele sabe traduzir nem se sabe inglês, mas posso te garantir que os originais dele em português também são assim.

    abração

  2. Vinicius disse:

    Roberto,
    Essa metáfora tradutor = goleiro é muito boa. Pior é quando o texto original não é grande coisa e o tradutor/goleiro tem que fazer grandes defesas para salvar o time, isto é, o livro. O curioso é que ninguém pensa que um livro pode ser ruim no original e bom na tradução.

    Não sabia que o prof. Flávio Aguiar era tão, digamos, “tortuoso” em sua própria língua. Preciso (não) lê-lo, então.

    Abraço,
    Vinicius

  3. Roberto disse:

    Pois eu sempre vivo esse dilema quando me deparo com maus originais. Tento salvar o autor ou deixo que ele seja reconhecido pelo que é? Antes optava pela segunda alternativa, mas me dei conta de que as pessoas vão sempre culpar o tradutor por textos cheios de montinhos para tropeçar e buracos para meter o pé, até porque poucas vezes tem acesso ao original. Então é melhor “carregar o time nas costas”.

    O Flávio Aguiar, como te disse, não sei se se incomodaria, ele é um cara super gente boa, tipo gaúcho bonachão, e dizem que é um bom professor de literatura. Conversei com ele umas duas vezes e é um tipo bem agradável. Espero que não se incomode, mas é o que eu penso.

  4. Vinicius disse:

    Bem que o tradutor/escritor poderia, então, ser mais valorizado, em todos os sentidos…

    Sim, também tenho boas referências sobre o professor Flávio Aguiar.

  5. Débora Dezerto disse:

    Vc é POP.

  6. Vinicius disse:

    E isso é bom ou ruim, Débora? Abraço, Vinicius.

  7. José Luiz disse:

    Olá, caro Vinícius. Sou um editor independente e tenho interesse em publicar este livro. Até onde sei a edição da Boitempo está esgotada e não me parece que haverá novas edições.

    Gostaria de conseguir seu contato para conversarmos sobre uma possível tradução sua, caso tenha interesse.

    Um grande abraço!

  8. Vinicius disse:

    Ok, José Luiz. Conversemos sobre essa possibilidade, então. Meu e-mail é viniciusfigueira@uol.com.br. Cordiais saudações.

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