
Horácio
Pensar a literatura de maneira pragmática, isto é, fazendo com que ela cumpra uma determinada função é algo tão antigo quanto Aristóteles, com a idéia de catarse, mas que fica mais bem expresso no século I a.C. em Horácio, o qual pregava que a literatura deveria ser utile/dulce, ou seja, deveria educar e dar prazer. Além disso, na sua Ars poetica, ele também defende a necessidade de que o escritor seja um profissional. Há aí toda uma gama de possibilidades que tem amplos desdobramentos na modernidade e, mais ainda, nesta chamada pós-modernidade, contra a qual me debato. Se todos se ativessem mais ao labor da lima, ao polir da palavra, enfim, ao “ars longa, vita brevis” horaciano, não teríamos a idéia já bem difundida de que qualquer um que escreva palavras rimadas seja poeta. Não são. São no máximo ajuntadores de palavras. Exemplo: o aluno ingênuo descobre que “computador” rima com “dor” e que “teclado” rima com “complicado” e produz uma maravilha como esta: “É só no meu computador/ às vezes tão complicado/ que encontro a dor/ essa danada que me chega pelo teclado”. Vejam que o jogo de palavras é até razoável, mas não há poesia nenhuma nisso, há apenas técnica. Aliás, poesia rimada é repugnante. – O poeta precisa ser trezentos, o poeta precisa escrever mais nas entrelinhas do que nas linhas. Poesia é criação, não é imitação. “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia“, diria Drummond. Percebam que o pensar e sentir são apenas os primeiros passos de quem se volta à escrita da poesia. A poesia, que é intangível, não fosse a forma, vem, é claro, do pensamento e do sentimento, mas quando se põe sob essa mesma forma deve estar acabada e ser autônoma o suficiente para ser maior do que o pensamento e do que o sentimento que a gerou. Em outras palavras, deve elidir o criador. Por isso o poeta não se confunde com o ser empírico cuja carne habita; o poeta é trezentos, já disse eu, citando outro Andrade. Quando ele faz um verso, contudo, não está querendo passar uma lição; não está querendo mostrar algo como se dissesse “viram como se deve agir”, ou “viram como é que se escreve”, ou “viram como esse poema nos alivia”. Esta é uma disfunção da poesia, perpetrada pelos educadores – que só pegam a parcela útil da poesia –, pelos ingênuos que confundem poesia com ensino de língua ou de História (os famosos “períodos literários” como muleta ilustradora de um período histórico), pelos poetas menores, pessoas cuja perspectiva é sempre moralizante (em geral por ressentimento, por não terem ingressado no mundo instituído). O poeta maior não ensina, não passa lições. Apenas diz como as coisas de fato são e já diz com o domínio da forma, é claro. E, por isso, ensinar a língua é algo que lhe é intrínseco, mas que não configura seu objetivo. Para pensar no bom poema pense no verbo ser. Por que algo é isto ou aquilo? A ontologia de qualquer objeto (do sujeito inclusive) só se explica pela mais absoluta incerteza, sabem aqueles que não se entregam às arbitrariedades da razão e nem ao juízo sintético a priori kantiano. Ao dizer o que as coisas são e não como são, a poesia ingressa no conceito, no território da filosofia. Mas a filosofia nem sempre foi o que hoje entendemos por filosofia. Daí o interesse de um Nietzsche e de um Heidegger pelo momento anterior ao surgimento da razão, daí a valorização dos filósofos da physis, os chamados pré-socráticos.
Outra questão: O que sobra para o leitor de hoje, aquele que pensa que vale tudo na interpretação do poema? Está certo que o leitor pode enxergar o que bem quiser naquilo que lê, mas isso não quer dizer que o sentido não seja alcançável, que não haja uma possibilidade de acordo. O leitor de hoje se julga um revolucionário. Mas sua interpretação é apenas um sentido possível. Não sabem que a boa interpretação da poesia é uma síntese de vários uns, que devem chegar a o sentido. Poesia é o sentido. Nem toda polissemia que encontramos nas palavras que compõem um poema é, contudo, necessariamente revolucionária. Às vezes, os poemas não são mais do que simples jogos de palavras cujos sentidos são todos de superfície, como mostrei acima no poeminha sobre o computador. Há poetas que exploram muito bem essa superfície do verso, que não sabem ser profundos, como é o caso de Quintana, que, apesar de tão benquisto no arraial porto-alegrense, é mesmo um pouco simplório. Agora, se pegarmos um Bandeira, a coisa muda de figura. Os sentidos de seus poemas são abertos, polissêmicos, mas há um sentido possível que se impõe mais do que os outros sentidos possíveis naquilo que seus versos dizem.Nele temos o sentido. Esse sentido em geral está associado a uma camada mais profunda do que o simples jogo combinatório das palavras no sintagma e no paradigma. Assim, se o poeta cumpre alguma função, esta função é a de um organizador daquilo que não se deixa organizar pelo discurso racional, de um sujeito que antevê o que só a muito custo vemos, entupidos que estamos pela barbárie da razão. Saber abrir os ouvidos à palavra do poeta e entender aquilo que ele –sinteticamente e com toda a incerteza – diz como sendo o que de mais próximo há da certeza: esta a tarefa do bom leitor, do sujeito que se deixa transformar pelo que é dito. Há quem se transforme, por outro lado, pelo silêncio. O silêncio também pode ser agradável. Mas quando há silêncio demais não sabemos se há apenas silêncio ou se há alguém por detrás dele, alguém que tenha cérebro, tronco e membros –alguém, enfim, que não pretenda/finja ser puro espírito. A palavra divina não vem pelo silêncio. A palavra divina simplesmente não vem. Isso é poesia.
E o sobre a escrita automática tão exercida por modernistas como Bandeira? de relance o que vem à cabeça colocar em papel, será que haveria poesia?
“Galencar” ou “Guilherme” (presumo que este seja seu nome): Antes de mais nada, obrigado por inaugurar minha seção de comentários aqui no WordPress (estou transferindo alguns velhos arquivos para cá…). Bem, sua pergunta é excelente, pois vai direto a uma técnica que eu refuto e a um poeta de que gosto, tentando flagrar certa contradição (toda contradição é um bom começo para a poesia e para o pensar). Quanto à técnica da escrita automática, acho que nela há apenas poesia embrionária, uma poesia prematura, que precisa do trabalho, do labor da lima, para ir ao papel. Funciona como um primeiro estágio, de muitos. Já o Bandeira, naquilo que aproveita do inconsciente em sua poesia, em sua, digamos, libertinagem poética, não faz, em minha modesta opinião, exatamente “escrita automática”. Sabe por quê? Porque havia em sua consciência um conhecimento tão sólido da poética ocidental que, ao escrever, tal conhecimento impregnava o que, em seus poemas, parece fruto puro do inconsciente. Um abraço. Vinicius.
Uma recomendação paralela: há um texto excelente do não menos excelente Antonio Cicero sobre o João Cabral, chamado “João Cabral e o verso livre” (Folha de São Paulo, 15/11/2008). Se você não achar, avise que eu lhe envio por e-mail.
Sinceramente, não conheço nenhuma obra de Bandeira com esta técnica, mas já tinha conhecimento que ele a usava. Vou procurar lê-las para comprovar se há realmente este “fruto puro do inconsciente”.
Adicionei-o a minha lista, achei muito interessantes seus textos sobre literatura e afins (somente tive tempo de ler estes), continue publicando-os, e outro abraço! (se depender de ti vais por toda libertinagem poética abaixo rsrsrsrs..)
ps.: já encontrei o texto recomendado, muito obrigado, vou lê-lo depois…
Obrigado por suas palavras! Vou continuar a escrever aqui, sim. Se você tiver oportunidade, faça uma leitura da “Estrela da vida inteira”, do Bandeira. O que eu quis dizer é que os versos apar
aentemente descompromissados ou ” automáticos” do poeta de Recife são de uma poesia superior. Mas não há investimento na técnica surrealista propriamente dita, não. Poesia é trabalho sério.