Da essência dos parafusos

parafuso

O mundo eminentemente prático e a produção de objetos que atendem àquilo que é materialmente necessário à sobrevivência da humanidade fizeram-me pensar na felicidade de um grande fabricante de parafusos. Não chego a ter certeza, mas presumo que mesmo o melhor dos grandes fabricantes de parafusos pouco saiba da essência daquilo que fabrica – sabe, no máximo, do material de que é feito o parafuso e, então, entre outros procedimentos, vai ao “mercado” e compra em grande quantidade a matéria-prima para produzi-lo, como um padeiro que compra farinha.

      Para além da simples compra do material necessário à fabricação do parafuso e de seu nobre processo de produção, há, todavia, coisa mais profunda: o fabricante de parafusos, ao contrário de poetas e outras bestas artísticas inseguras, sente-se satisfeito em produzir algo que tem utilidade imediata na realidade concreta. Produz, aliás, milhões de parafusos justamente por comprazer-se em arrecadar milhões de reais em troca de seu “empreendimento vencedor“, concretamente milionário, já descontados os salários miseráveis de seus subalternos, o trabalho voluntário de sua esposa na instituição do câncer infantil e os impostos que paga a um irmão que sabe lucrar tão bem quanto ele, o governo de plantão. Ao final do mês, contabilizados os lucros, o fabricante de parafusos está feliz. No final de semana, sente-se útil à humanidade porque vai a um shopping-center e vislumbra, na coluna de ferro que sustenta o teto, o parafuso que fabrica; porque vai à casa de um amigo e vê o mesmo parafuso na rústica e moderna caçarola em que lhe preparam um linguado à la belle meunière; e porque mesmo a portinhola que guarda o rolo de papel higiênico no banheiro de quarenta metros quadrados de sua residência contém parafuso idêntico. Trata-se, enfim, de um homem satisfeito por sua ubiqüidade, de um homem que gargalha diante de fáusticos programas televisivos e que fala de si com toda a propriedade, sem dar espaço a questionamentos metafísicos sobre sua tão bem formada personalidade, forjada naquela dureza imbatível do papel-moeda.

       Em alguns lugares do planeta e principalmente em certos estados meridionais iluminados, esses homens úteis e satisfeitos estão na vanguarda, mas não fabricam somente parafusos… Fabricam também coisas deveras mais imprescindíveis, como talheres e espumantes, sapatos e refrigerantes, sabonetes e sorvetes, eixos e chassis, treinadores de futebol e modelos magérrimas. No final do dia, quando esses gigantes risonhos da sabedoria prática chegam em casa, o portão-de-ferro automático de seis metros de comprimento se lhes abre, dando espaço para que sua comunhão com o mundo possa, finalmente, fazer-se completa: o beijo rápido na esposa, o sorriso dos filhos e o delírio saltitante do cachorro são indícios claríssimos disso. Assim como o são, é claro, os olhares coniventes e obtusos dos quatro fortíssimos seguranças importados que mandou trazer há muito tempo  da África.

 Texto escrito em 11/3/2008
Publicidade
Esse post foi publicado em Reificação, Sociedade brasileira, Sociedade gaúcha e marcado , , , . Guardar link permanente.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s