
Prezado professor,
Não sei quem foste, mas sei que morreste. Sei que morreste porque comprei os teus livros. Não todos, porque eram muitos. Mas o suficiente para que, ao menos, esta nota saísse.
Teus livros estavam dispostos às centenas, todos em uma banca da Almirante Barroso, junto ao Largo da Carioca. Livros límpidos, de boa cepa, em idiomas vários, predominando, é claro, o inculto e belo, mas também os havia em língua bárbara, em língua irmã e em língua afetada. O rapaz da banca, gordo e gentil, deixou-me escarafunchar as prateleiras de cima a baixo, em dois dias consecutivos. O custo das obras não me foi alto, os preços eram módicos diante da qualidade do que se vendia. Então, nesses dois primeiros dias, saí com uma dúzia − talvez duas dezenas − de livros em grandes e onipresentes sacolas plásticas.
Folheei e li trechos de vários desses livros no entre-tarefas diário, ou no rabo das horas, como dizem os portugueses, mas a imagem das prateleiras em que se assentava teu tesouro perdido lá na Carioca − imaculado e não resgatado por carioca nenhum − permanecia em minha cabeça mais do que os trechos lidos. Controlei-me, porém, e não voltei à banca. Mas isso foi só por sete dias, ou menos, que eu sou fraco. Logo voltei e, pedindo licença ao rapaz gentil e gordo, mais uma vez, a terceira, perscrutei todas as prateleiras.
Desta feita, enquanto se esvaía não só o horário de almoço (sim, neste horário os servidores públicos saem da gaiola de ouro − de tolo − em busca de ouro verdadeiro), mas outra hora adicional, repassei metodicamente todo o lote, que, pelo jeito, trazia obras antes não vistas, e pouquíssima pirita. Ao rapaz da banca − que até então somente respondera, mui clara e cordialmente, por sinal, a perguntas dos transeuntes acerca de orientação espacial urbana no Centro do Rio, inclusive em inglês (“Onde fica o mosteiro de São Bento?”; “Sabe me dizer para que lado fica a Assembleia?”; “How can I get to Santa Teresa?”. Em tempo: em que lugar outro do Brasil, dono de banca de livros ou jornais fala bom inglês, senão no maldito Rio de Janeiro?) −, ousei perguntar, na condição de cliente interessado, quase no tom dessas bestas diárias que vemos a nosso redor no comércio, se de fato havia novos livros ali e a quem teriam pertencido. Não quis saber, naturalmente, o nome do antigo dono, mas apenas que espécie de pessoa fôra (sic para o “ô”). E o rapaz disse: “Era professor da área de linguística, semiótica, ou coisa do gênero…”.
O espólio, enfim, estava ali, em média vendido por 25 reais a unidade. Carreguei mais um lote, menor, e saí razoavelmente satisfeito, não obstante advertindo o rapaz de que talvez voltasse na semana seguinte, sentindo-me um pouco envergonhado pela possibilidade de fazê-lo outra vez – isso diante da impossibilidade que é disfarçar-me quando aqui falo, ainda mais perante ouvintes de bom ouvido e conhecedores de idiomas como ele, que certamente me reconheceria não só pela barba ou pelos óculos, mas pelo sotaque e fonemas, carentes de chiados e erres rascantes e rococós. Estávamos em fevereiro.
Então veio a pandemia (será endemia?), já era março, e, trancafiados em casa, ficamos todos alheios ao mundo do outro. Os livros do professor defunto deixei-os em algum móvel no trabalho, onde ficaram em sono profundo por três ou quatro meses, até que novo resgate se desse e, agora, julho, quase agosto, tenho-os todos em casa, junto aos meus, à espera de uma vaga nas prateleiras. O bibliófilo compra muito mais do que lê. Esse é um mal que certamente será expurgado à porta do inferno, como diriam alguns. Mas não há inferno alhures, diria eu, o inferno é aqui mesmo, como diriam tantos outros, nessa miríade de lugares-comuns por que nos guiamos.
O abarrotamento das prateleiras é meu, mas certamente foi teu também, prezado professor, tu que morreste e encontraste, depois de morto, este outro irmão pecador. Sim, compramos muito mais do que lemos, porque, como já explicaram tantos sábios, em especial um certo Auerbach, que, nos anos 30, na Turquia, precisou ensinar bárbaros a partir do cabedal de informações que guardava em sua mente, bastam-nos poucos livros para que entendamos de onde vem o que ocidentalmente somos. Basta-nos a Ilíada e a Odisseia; basta-nos a Bíblia, dizia o sábio (apesar, digo eu, daquele ramerrão soporífero do Pentateuco, com suas regras e mais regras pormenorizadas, narcisistas, egóicas e neuróticas, não mais seguidas, quero crer, pelos homens de boa-vontade). Basta-nos, talvez, prossigo, a Divina Comédia e mais uns cinco ou seis livros aleatórios, de nosso gosto pessoal, para formarmos a base da leitura dos outros mil, que virão durante o ciclo a nós destinado antes da volta à terra.
Escrito em 28/7/2020.