Abaixo, um pequeno resumo informal, que fiz ao final da década de 199o, do que Sartre dizia na primeira parte de seu livro “Que é a literatura?”. Nessa época (década de 1940), ainda se falava em literatura e engajamento…
I – Que é escrever?
Sartre refuta a tese de que o engajamento que propõe à literatura deva se estender às outras artes, pois não aceita a mera correspondência entre as artes. Cada uma delas dispõe de uma linguagem diferenciada.
Há uma distinção fundamental, por exemplo, entre o meio de expressão pictórico e o literário: na representação de uma casa, o pintor apresenta, digamos, um casebre e cabe ao leitor ver nesse casebre o que quiser. O escritor, por sua vez, pode dirigir o leitor e, quando descreve um casebre, mostra nele o símbolo das injustiças sociais e provoca a indignação do mesmo leitor. Isso, para Sartre, acontece porque para o pintor a casa é coisa, ao passo que para o escritor a casa é signo (na linguagem existencialista, a casa do pintor é, enquanto a casa do escritor existe). O pintor não pinta significados – assim como o músico não transforma significados em música –, por isso a impossibilidade do engajamento. Já o escritor (de prosa) lida com os significados.
O império dos signos é a prosa, mas a poesia está lado a lado com a pintura, a música e a escultura. A poesia, ao contrário da prosa, não se serve das palavras, isto é, os poetas se recusam a utilizar a linguagem. Para eles as palavras são coisas, não signos. O signo possui uma ambigüidade que permite olhar através dele, visando à coisa significada, ou que se volte para a realidade do próprio signo, considerando-o objeto. Aos poetas mesmo o significado (“fundido à palavra, absorvido pela sua sonoridade ou pelo seu aspecto visual, adensado, degradado”) é coisa. A palavra, para o poeta, não é signo de um aspecto do mundo, mas imagem de um desses aspectos.
A imagem verbal utilizada pelo poeta para “refletir” algo não é necessariamente a palavra que habitualmente usamos para designar o mesmo objeto. As palavras-coisas do poeta formam o que Sartre chama de frase-objeto. A poesia cria o mito do homem, enquanto o prosador traça o seu retrato. Na poesia, o mundo e as coisas passam para o inessencial, convertem-se em pretexto para o ato humano, que se torna o seu próprio fim. Para Sartre, o poeta mantém-se, até o séc. XIX, em acordo com a sociedade e seu conjunto. Após o advento da sociedade burguesa, o poeta faz frente com o prosador e a declara insuportável.
O prosador escreve e o poeta também. A prosa é utilitária por essência; o prosador se serve das palavras. As palavras são, para ele, designações de objetos. Sartre diz que o prosador é alguém que escolheu agir por desvendamento, feito através da palavra, pois falar é agir. A função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele. Imerso no universo da linguagem não pode mais fingir que não sabe falar: entrando no universo dos significados, não consegue mais sair.
O escritor é escritor porque decide dizer as coisas de um determinado modo, e o estilo (que deve passar desapercebido e é determinado somente após se haver decidido sobre o que escrever) é o que determina o valor da prosa. As exigências do social ou da metafísica obrigam o artista a descobrir uma nova língua e novas técnicas. Não escrevemos mais como no séc. XVII.
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O filósofo francês não aceita a tese de que os escritores do passado não escrevessem com o intuito de destruir, edificar ou demonstrar coisas acerca do mundo, sendo o conceito de mensagem uma espécie de neutralizador do verdadeiro poder das palavras do escritor. Não se pode, então, ter diante dos escritores uma postura que vise a encontrar em suas obras apenas uma mensagem que a tudo resuma.
“Um escrito é uma empreitada, uma vez que os escritores estão vivos, uma vez que acreditamos que o escritor deve engajar-se inteiramente nas suas obras, e não como uma passividade abjeta, colocando em primeiro plano seus vícios, as suas desventuras e as suas fraquezas, mas sim como uma vontade decidida como uma escolha, com esse total empenho em viver que constitui cada um de nós” (p.29; Tradução de Carlos Felipe Moisés. Editora Ática.).