A noção de “repertório de ignorâncias”, que não sei a quem pertence, lembrando-me apenas de tê-la ouvido pela primeira vez na voz de um professor irônico, deve aplicar-se a todos nós, humanos.
Na realidade proposta neste mini-ensaio, título com o qual um grande amigo, bondoso, certa feita, fraternamente, rotulou meus textos, restrinjo-me a falar de apenas um componente que até bem pouco tempo fazia parte de meu repertório de ignorâncias. Sim, sempre haverá autores para as quais nunca abrimos os ouvidos ou ajustamos as sinapses. É claro que Flusser não chega a ser alguém ignorado no meio acadêmico brasileiro, mas do título deste mini-ensaio aposto que o leitor brasileiro mediano não apreende as três primeiras palavras. Não há esperança, mesmo, feliz ou infelizmente, que saibam o que é fenomenologia e nem muito menos o que significam os dois nomes próprios que a antecedem. Mas não nos desesperemos. Todos temos nosso repertório de ignorâncias e aqui venho eu purgar um pouco do meu.
É verdade que conto na estante de minha pequena biblioteca – já nem tão pequena assim, pois julgamo-nos, ingenuamente, eternos e com mais tempo para ler do que de fato dispomos – com “Língua e realidade”, do autor tcheco (sim, Flusser o era). Lembro-me de ter iniciado a leitura do livro há uns três ou quatro anos em lugar improvável. Na demorada sala de espera (ou leitura) de uma nutricionista (!), que, à época, freqüentava semanalmente, o que havia para ler eram Caras e Vejas. Tentei, então, naquela hora de espera semanal, durante cinco ou seis meses, sempre avançar um pouco no livro de Flusser. Não consegui. O ambiente não ajudava. E o livro ainda me espera, em meio a tantos outros.
Neste mês, contudo, um pouco envergonhado de manter autor de tal envergadura em meu repertório de ignorâncias, tomei iniciativa audaz e li (outro) livro dele: “Fenomenologia do Brasileiro”, traduzido, creio eu, pelo professor fluminense Gustavo Bernardo (não há crédito sobre a tradução). Há, diga-se, uma versão on-line, acessível a todos, divulgada pelo citado professor. Porém, não resisti, e comprei o livro em papel pela bagatela de R$ 19,00 (EdUERJ, 1998; na capa, famoso quadro de Tarsila do Amaral, que não capta integralmente o sentido da obra, mas é uma tentativa…).
No livro em papel, temos, além do próprio texto de Flusser, uma boa introdução de G. Bernardo, apontando entre outras coisas, para os conceitos de “redução fenomenológica” (épokhé) e, também, para a famosa “suspensão temporária da descrença”, de Coleridge. [Como antigo leitor de Teoria da Literatura, confesso que quase fui abrir meu exemplar da Biographia Literaria (capa dura, da Indypublish de Boston, cerca de 300 páginas, comprado por valor irrisório em sebo carioca), para cruzar informações, mas me contive, senão a leitura nunca acaba.] Enfim, para não tornar enfadonho este texto aqui, resumo em uma frase curtíssima o que teria a dizer: filosofia e literatura dialogam em nível profundo.
Volto ao livro de Flusser, ponto central deste mini-texto. Para usar uma imagem gasta e aproveitar o sentido do nome do autor: o livro é um rio a ser navegado várias vezes. Uma leitura só não me bastou, ao menos. Estou na segunda. Agora, valendo-me também das facilidades da edição on-line (que joguei para dentro de um editor de textos), faço uso de marcadores, corrijo pequenos defeitos de formatação e, acima de tudo, seleciono trechos que julgo interessantes e sobre os quais poderia discorrer longamente, tivesse tempo para tanto ou tivesse que dar aulas, como dantes.
Encontro, no livro, um misto de admiração e elegante desprezo pelo que é o Brasil. O olhar estrangeiro de Flusser, de um lado, despe-nos por completo. Estamos nus: índios que somos. De outro, veste-nos com a melhor das indumentárias, visando a nos colocar em meio aos mais nobres salões intelectuais do mundo ocidental ou “histórico” – para usar a terminologia do autor – como se representássemos uma centelha de esperança diante do desalento europeu. Não se trata de desprezo de parte de Flusser (ele não está trabalhando com a imagem de levar índios às côrtes européias), mas de esperança fidedigna de um autor que conhece bem o significado da palavra migrante, por ser ele próprio um, e que estuda bem o fenômeno da migração no verdadeiro melting pot que é esta terra (e não os Estados Unidos, como diz), constituída por homens de todos os cantos do mundo, para além das três raças tristes. Quem sabe o brasileiro teria algo a dizer que mudasse efetivamente o mundo? É essa a pergunta/esperança de Flusser.
Passados mais de vinte anos da produção do livro (Flusser morreu em 1991), talvez se possa dizer que já tenhamos dado o primeiro passo rumo ao abandono da obsolescência a que parecíamos estar condenados. Mas não pretendo aqui fazer leitura sociológica, econômica ou política que privilegie conexão com nosso estado atual de coisas, em que a situação do país, de fato, na esfera internacional, é, seguramente, a melhor dos últimos cinqüenta anos. Deixo tal tarefa aos mestres da economia, da sociologia e da ciência política, sempre dispostos a tudo explicar com aquela certeza que convence muito bem o público televisivo… Eu, curioso, restrinjo-me a outras perguntas: O que somos, importa? Estabilidade econômica eivada de ignorância, importa? Futebol, carnaval e cordialidade, sem estofo, sem conhecimento filosófico, importam? Maniqueísmo direita versus esquerda, e seus respectivos patrulhamentos, importam? Onde estamos hoje? Quem somos nós, brasileiros? O que podemos fazer efetivamente para este mundo que se abre diante de nós? Se começássemos todos pela leitura de Flusser, o segundo passo estaria dado.
Vamos aguardar seu novo mini-ensaio, assim que terminar a segunda leitura do livro. Até lá!
Obrigado pela visita, Alexandre. Porém, como a idéia do site é variar os autores abordados, voltarei a escrever sobre o Flusser só mais adiante. Neste mês, acho que vou de filosofia alemã.
Um abraço,
Vinicius
Esse professor irônico que referes acima é o maior filósofo e escritor brasileiro Olavo de Carvalho!!!
Negativo. Trata-se de um antigo professor da UFRGS e da PUCRS. Em tempo: sua opinião sobre O. de C. é, felizmente, só opinião. A minha é outra. Saudações.