De volta às “Memórias do Coronel Falcão”

 

Prezados leitores: apresento uma resenha já antiga, escrita na década de 1990, sobre livro mais antigo ainda. Antes que a gaveta a engolisse, retoquei-a, para publicação curta, como esta. É claro que cortei algumas coisas e retirei algumas ingenuidades. Inseri, também, uma ironiazinha aqui e um debochezinho acolá. Tudo sem menoscabar ninguém, a não ser a mim mesmo.

 

O livro Memórias do Coronel Falcão, de Aureliano de Figueiredo Pinto, escrito em 1937 e publicado apenas trinta e seis anos depois, em 1973, é uma incursão pelo universo gaúcho das três  primeiras décadas do século XX. A personagem principal, o coronel Falcão, é um estancieiro levado ao poder em seu município. Em torno da mudança de seu status, de homem do campo a administrador público, é que o romance se desenrola.

Falcão, homem solteiro e sem filhos, vive, antes de tornar-se homem público, de maneira tranqüila e à margem da política, governando apenas quem para ele trabalha, em sua estância. Seu espaço é o do proprietário de terras que produz ao seu redor um mundo particular em que reina absoluto. Tal mundo, na verdade, reproduz – e aí vai um protótipo – o isolamento e a introspectividade do estancieiro gaúcho, cujas aspirações estão voltadas basicamente à proteção da família e daqueles que lhe são caros. Falcão, contudo, não possui família, e, se está a proteger alguém, esse alguém é ele próprio. A essa espécie de senhor das terras não interessa o que se passa além de suas cercas. O arame farpado demarca não só os limites de sua propriedade, mas também os limites de sua personalidade, de seu espírito – se quiserem. O homem enclausurado em seus domínios, feito um semideus, será, porém, forçado a agir.

As forças políticas e, queira-se ou não, humanas, comandadas pela mão de um narrador onipresente e onisciente, a falar-nos naquela primeira pessoa indicativa de ubiqüidade (escolha, talvez, de um autor também onipresente em flagrante mea culpa, de cujas garras o leitor custa a se libertar), exigem que Falcão abra seus horizontes para além da estância. Na verdade,  o poder político e o amor  reclamam essa simbiose do “semideus” do pampa com o universo que o cerca. Ocorre, portanto, a invasão do pequeno e fechado mundo de Falcão em duas instâncias: pelos apelos políticos de uma sociedade em busca de um líder — torna-se intendente do município, aprovado inclusive por Borges de Medeiros, chefe supremo, muito ironizado ao longo do romance — e pelo surgimento de uma mulher, ou melhor, amante, que paralelamente conferirá certo clima romântico à narrativa.

A política e o amor serão, assim, responsáveis pela degradação do herói do pampa. Perdido em um ambiente hipócrita em que as ações estão carregadas de duplas possibilidades — o ambiente político — e afetado por um adultério só a muito custo consumado, Falcão ingressa em um mundo que poderíamos chamar — se levarmos em conta o caráter do personagem — de “impuro”. O mundo anterior,  o mundo da estância, nessa lógica — e se me permitir o leitor desta resenhazinha — seria ou restaria como mundo puro. A pureza, portanto, representaria o Falcão pré-político, o Falcão sem esposa, ou amante, e vida social. Já a impureza estaria associada ao Falcão público, ou seja, ao homem em contato ativo com o meio em que vive, para além de sua propriedade, para além de si mesmo.

 (Pausa para o clichê: Se quiséssemos fazer uso da oposição “regional x universal” nesta análise, o regional constituir-se-ia não só pelos elementos típicos do espaço gaúcho, como a estância, o pampa, o cavalo, mas também pela ausência de vida social mais ampla, pela ausência da inserção do homem em um Estado, ou em um País — ausência que, por sua vez, representaria o universal, o diálogo com  mundo, com seus inerentes males à formação original e, digamos, imaculada, do caráter da personagem.)

O mundo “impuro”, em que o coronel inicialmente desfruta do poder que lhe havia sido concedido, tem, no entanto, curta duração. A conquista da mulher, Stelita, também. A classe que governa o Estado quer, na verdade,  dividir o poder dos estancieiros  e com eles joga, dando-lhes e retirando-lhes o poder, de acordo com suas conveniências. Stelita, a amante, constitui, em um mundo ainda conservador, um objetivo inalcançável a Falcão pela dificuldade que a quebra do matrimônio (dela) representa. O coronel é, então, mesmo que ainda sem o saber, violado em seus princípios por essas duas  circunstâncias: a política e o amor. Logo a seguir, essas duas novas realidades provam ser realmente deletérias e desencadeiam um processo de degeneração, em que a ausência da mulher, as dívidas, a perda de patrimônio, a entrega da fazenda aos credores e a destituição do mandato são os elementos principais. A “impureza” está consumada.

O coronel percebe, então, que abandonou seu mundo em troca de uma quimera [para um estudo aprofundado de peripécias, nós, catarses e otras cositas más, que são tão boas — se é que me entendem —, ver a esquecida Poética de Aristóteles, tradução de Eudoro de Souza. Eu a lia inteira, em voz alta, com meus alunos, examinando o texto em si e as notas do tradutor. Ninguém reclamava. Pelo contrário…]. Voltando ao Falcão: Tanto o poder político quanto o amor que possuía eram embustes. Sente a necessidade de reconstruir-se. Resta-lhe somente a possibilidade de comandar um rancho que outrora presenteara a um peão, afilhado seu. Na pequena propriedade que o peão, compadecido, devolve-lhe, Falcão restabelece seu equilíbrio e lentamente começa a readquirir seu poder. No rancho tentará a volta à pureza do mundo que perdera.

A volta ao campo e a obrigação de buscar o próprio sustento representam o retorno à essência [ai!] de um personagem irremediavelmente ligado à terra. Feita a síntese, a passagem pelo mundo externo ao campo, Falcão estava pronto para retornar. O retorno, ainda que por um caminho diferente daquele por que partiu, devolve-lhe seu mundo original e instaura um novo tipo de poder. Esse poder, que é de outra natureza, diferente dos outros por ele experimentados, pois não é o poder do grande estancieiro nem tampouco o do político, constitui um novo coronel Falcão, autóctone, mas voltado ao mundo exterior. Um homem sintético, enfim.

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