Pero Vaz de Caminha & Hans Staden: anotações de gaveta

Para não deixar em branco o mês de abril, mês brasileiro por excelência, uma anotação de gaveta:

A carta, de Pero Vaz de Caminha &  A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, de Hans Staden

 Os dois relatos de viagem, aqui resenhados de maneira muito breve, quase preguiçosa, guardam uma distância temporal de cerca de cinqüenta anos e inserem-se no grupo de textos quinhentistas cuja característica principal é a narrativa dos primeiros contatos com povos nativos do Novo Mundo, o continente americano. Essa aparente pequena distância que os separa é, porém, definidora de uma grande diferença: a profundidade com que os dois “relatores” viveram o contato com o índio brasileiro. Bastaram cinqüenta anos para que dois europeus experimentassem de maneira muito diversa a visão de mundo oferecida pelo outro, representado por índios diferentes e de tribos também diferentes. Nesse pequeno período histórico, pequenos povoados portugueses já se impunham, como os pês desta oração. O Brasil já era um pouco mais do que índios à beira-mar. Daí a diferença primordial entre o relato en passant de Caminha e a experiência de vida, pelo menos aparentemente, mais intensa de Staden, que flutuou entre tribos inimigas em um mesmo território.

Caminha, dirigindo-se a Dom Manuel,  começa seu relato por uma demonstração de humildade cínica, dizendo-se quase incapaz de fazê-lo, principalmente se o que narrar for comparado aos relatos dos capitães. Pretende, contudo, já desde o início, cumprir uma certa fidelidade ao fato objetivo, escrevendo “nem para aformosear nem para afear”. Narra ao soberano, seu interlocutor preferencial, o trajeto navegado: a passagem pelas Canárias, por Cabo Verde, e a chegada, cerca de um mês depois, em 21 de abril de 1500, ao continente americano, indicado pela quantidade de ervas compridas e pela presença de aves. Avista o monte que  seu capitão chama de Pascoal, um “monte muito grande, muito alto e redondo”. Há, no dia 22 de abril, o primeiro contato com homens que andavam pelas praias, assim descritos pela frase já tantas vezes repetida: “A feição deles é serem pardos, quase avermelhados, de rostos regulares e narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura; nem se importam de cobrir nenhuma coisa, nem de mostrar suas vergonhas. E sobre isto são tão inocentes como em mostrar o rosto”. Essa descrição é que, pode-se dizer, define um afastamento entre a cultura européia e a americana, recém-descoberta. O indígena é visto como um animal exótico, não possuidor da dignidade humana que cerca o homem europeu e o seu representante mor,  o rei português, o interlocutor.

No primeiro contato do capitão, Cabral, com os índios, já afloram, entre a troca de curiosidades gastronômicas e zoológicas, os interesses primeiros da expedição: a existência de ouro e a prata naquelas terras, algo que os índios confirmam, embora o próprio Caminha declare que “isso [a existência de ouro] entendíamos nós, por assim desejarmos”. Os primeiros contatos lingüísticos provavelmente contêm, ou contiveram, um preenchimento  fantasioso mútuo.

 O caráter religioso da expedição está representado pela missa rezada por Frei Henrique. Caminha tece as primeiras considerações acerca da facilidade com a qual aqueles selvagens seriam cristianizados. Aqui se tem uma manifestação óbvia do quão importante é a religião na conquista, por parte do colonizador, do outro, do homem desconhecido, analfabeto e “ateu”. A religião imiscui-se entre essas duas espécies de homem, o colonizador e o colonizado, como elemento aglutinador e, ao mesmo tempo, destruidor.

É a religião a mola mestra da narrativa de Staden, em cujo começo há uma carta que declara não só a obediência ao príncipe Phillip, mas também, e principalmente, a Jesus Cristo. O viajante alemão não tem como interlocutor Sua Alteza, ao contrário da carta de Caminha. Seu texto dirige-se ao leitor comum. Porém, muitos dos fatos por ele narrados são atribuídos à intervenção divina. A maneira por que se salva de ser a iguaria principal do banquete antropofágico dos Tupinambá(s), por exemplo, é atribuída à vontade divina, apesar de estar evidente que os índios o pouparam pela mais obtusa superstição – algo comum entre povos primitivos. Para os selvagens, algumas mortes sucessivas entre membros de uma mesma família indígena, provavelmente devido a uma epidemia, foram levadas a cabo pela ira do deus do homem branco (no caso, Staden), que  por eles estava sendo maltratado. Decidiram, então, esses primitivos homens, poupá-lo para que seus companheiros não mais morressem. Como a coincidência ocorreu, i.e., ninguém mais morreu após terem poupado o alemão, a superstição prosperou entre os indígenas e Staden continuou vivo.

O livro de Staden se divide em duas partes: a primeira trata das duas viagens que fez ao Brasil; a segunda traz uma espécie de guia para se chegar ao Brasil, além de conter uma descrição pormenorizada dos usos e costumes dos Tupinambá(s).

Na primeira viagem que fez ao Brasil, saindo de Lisboa, em embarcação portuguesa,  Staden  chegou a Pernambuco, onde a tripulação de que fazia parte prestou ajuda ao povoado de Igaraçu, que estava sitiado pelos selvagens. Conseguem a rendição destes e logo retornam a Portugal, em uma viagem de 108 dias de fome até os Açores. Dessa primeira viagem o relato é bem curto.

Em sua segunda viagem marítima, sai de Sevilha (na páscoa de 1549). São três embarcações que partem conjuntamente e combinam encontrar-se à latitude 28 sul (ilha de Santa Catarina), no Brasil. Somente em novembro de 1549 é que a nau em que estava Hans Staden chega, sozinha, ao litoral brasileiro, mais precisamente na altura de Paranaguá, lugar em que perguntam pela ilha de Santa Catarina aos nativos, os quais lhes indicam o caminho e a distância a navegar. Quando chegam a Santa Catarina, um espanhol (Juan Fernando, basco de Bilbao) os recebe. Expressam-lhe o desejo de ir ao Río de la Plata. Logo após, chega uma das outras duas naus que haviam partido de Sevilha. Inexplicavelmente, a nau maior afunda. Todos os tripulantes ficam por dois anos presos nas ilhas. Decidem, então, ir a Assunção, metade por terra, metade navegando na embarcação que restara. Staden está entre os que vão pelo mar. Essa viagem definiria seu destino.

A primeira atitude é a de ir a São Vicente para alugar uma nau dos portugueses, com a qual pudessem alcançar mais facilmente o Río de la Plata. Ocorre então o naufrágio da caravela em que estavam, ainda que sem baixas, próximos a Itanhaém, onde são recebidos por portugueses. Vão a pé até São Vicente, buscando uma nova vida, uma ocupação. Lá, os portugueses são aliados de tupiniquins, estando cercados por duas tribos inimigas: os carijós, ao sul, e os tupinambás, ao norte. Faz-se necessária uma fortaleza que defenda os portugueses do ataque dos tupinambás, e é justamente Staden que começa a desempenhar a função de guarda nessa fortaleza, até ser capturado por eles.

Na aldeia dos tupinambás, o alemão é recebido de maneira ameaçadora. Segundo o ritual da tribo ele deve ser devorado, pois é um inimigo. Os tupiniquins atacam  os tupinambás, sem resultado positivo para Staden, que se transforma em um prisioneiro valioso à espera da morte. Contudo, dá-se a supracitada mortandade de alguns tupinambás, fato que leva Staden a ser temido. A partir desse momento, ele integra-se a tribo, exercendo um papel de conselheiro, caçando, participando de batalhas. Começa, então, depois de um período de nove meses, a pedir aos chefes indígenas que o libertem em troca de presentes que um suposto irmão seu enviaria. Com a chegada de uma nau francesa, consegue, através de uma simulação em que os tripulantes passaram-se por seus irmãos, ludibriar os indígenas, que o deixam partir ao encontro da família. Chega à Europa em fevereiro de 1555, com muita brasilidade nas costas.

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6 respostas para Pero Vaz de Caminha & Hans Staden: anotações de gaveta

  1. marina amita disse:

    Caro Vinícius!
    Há tempos minha procura hoje encontra seu caminho- assim espero.
    Là no que chamam de passado, dias de lfm2006, vindaloo-amita, os encontros se davam mais frequentemente, sempre valiosos e queridos.
    O desejo de retomar a trocame traz aqui.
    Aguardo continuidade, ok?
    fraternissimo abraço!
    _II_ mg

  2. Vinicius disse:

    Que grande surpresa! Estou muito feliz com esta visita sua, pessoa que guardo na mais alta consideração e de quem sinto falta neste mundo da Internet. Eu, de vez em quando, ainda passo no Vindaloo… Tomara que você volte a escrever em algum lugar. Um grande abraço. Vinicius

  3. debora disse:

    eu gostei mt td isso

  4. Vinicius disse:

    Obrigado, Debora.
    Abraço,
    Vinicius

  5. gabriela disse:

    adorei me ajudou muito!!!

  6. Vinicius disse:

    Obrigado, Gabriela.
    Um abraço,
    Vinicius

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