Nota: Este texto é um fragmento de um ensaio de maior fôlego sobre a obra do poeta pernambucano. Saudações especiais a todos os alunos que, como eu, um dia aprenderam [verbo intransitivo] no próprio Recife, terra de ótimos professores. Alô, professora Bianca!
Tanto a literatura quanto a filosofia, como discursos distintos e, mais do que isso, classificados diferentemente, não deixam de ser modos pelos quais o homem interpreta (1) o mundo [objeto externo, dado a priori], (2) a si próprio [a subjetividade] e (3) a relação que trava com o mundo [integração ética do sujeito no mundo]. Não cabe verificar, na extensão de um texto introdutório como este, a proeminência daquilo que chamamos de discurso poético e daquilo que chamamos de discurso filosófico na compreensão do que seja o simples estar no mundo (aspecto ôntico), ou melhor, da compreensão de um dever-ser (aspecto deôntico) que necessariamente reflita uma ontologia ainda (ou para sempre) desconhecida. Basta dizer, por enquanto, que a ética é algo que também se constrói.
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É de se argumentar que verdadeiro poeta seria aquele que de fato vive na vida (a redundância é proposital) aquilo que diz na poesia, mas tal raciocínio, de fundo quem sabe nietzschiano e de louvor à arte como atividade intransitiva e iluminadora, não é acatado com tanta facilidade em um mundo mais filisteu do que exatamente dado à reflexão. (A intransitividade da arte, contudo, convoca uma espécie de pensamento teórico já um pouco esmaecido, e mais apropriado talvez, em seu ponto máximo, à escola francesa dos anos 70. Não é dessa intransitividade que se fala. Fala-se, sim, em rigor artístico, em reconhecer a arte que de fato busca reocupar de maneira muito própria, mas em diálogo constante com outras disciplinas, o espaço há muito perdido e ocupado de maneira obtusa pela publicidade e discursos afins, todos voltados à oligofrenia geral e irrestrita, essa sim intransitiva). Fiquemos, então — pelo menos por enquanto, como maneira de facilitar o trabalho e também de aproveitar o que a análise imanente trouxe de bom aos estudos de literatura — na superfície lisa e rasa do texto em si, mais acomodado à forma do que ao próprio conteúdo.
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Um dos recursos mais empregados pelo poeta João Cabral de Melo Neto é a superposição de metáforas. Pode parecer ao leitor mais inexperiente que as metáforas tenham mero caráter substitutivo, mas isso de fato não ocorre com o poeta pernambucano, que consegue carregar de sentido as imagens expressas, em geral, pelos substantivos concretos escolhidos. Do rio, passamos ao cão, do cão ao homem, numa fluidez impressionante e que é ela própria um substrato metafórico daquilo que a palavra pode e consegue fazer para dar conta do estar no mundo. Obviamente, na estrutura tripartite imposta pela metáfora, encontramos, como em qualquer obra de arte digna do nome, uma espécie de certeza maior do que a nos proporciona a racionalidade. Em outras palavras: o jogo metafórico na poesia não só aponta para a coisa representada, mas também para a própria coisa representante, ambas jungidas em um terceiro ponto, ponto de fuga, ponto talvez inalcançável à razão pura e simples, porque ponto em que há uma certeza que se poderia dizer absoluta, porque criada, porque provocada intencionalmente. Em linguagem esquemática: A, que representa B, não é A nem B, é C, mas um C sintético e absolutamente imbuído de raison d’être.
Idealmente, então, toda poesia deveria gozar dessa prerrogativa. Na prática, contudo, nem todos os poetas conseguem alcançar esse intento. Como o âmbito deste texto introdutório à obra de João Cabral é mesmo pequeno, torna-se aceitável a redução do objeto a uns poucos poemas seus [Nota: aqui no site, somente um poema é analisado]. Passemos a eles, apresentando, primeiramente, a Psicologia da composição, poema auto-explicativo, poema de tese (no bom sentido, isto é, poema de tese no sentido metalingüístico, e não no abominável sentido vulgar de “tese político-panfletária”) :
Psicologia da composição (VI)
Não a forma encontrada como uma concha, perdida nos frouxos areais como cabelos; Não a forma obtida em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro do invisível; mas a forma atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola, aranha; como o mais extremo desse fio frágil, que se rompe ao peso, sempre, das mãos enormes.
Fazem-se duas observações primeiras: a inegável recusa ao acaso e a forte convicção horaciana de que poesia implica limar o verso. Ao lixo, portanto, com a poesia fácil e automática. Ao contrário do que poderia pensar o leitor que vê na poesia uma escada para a sustentação de uma determinada tese política, este poema tem como influenciar a sua atitude, mas pelo viés ético. Perguntar-se-ia talvez o leitor: “Como pode essa forma proveniente da labuta poética afetar eticamente aquele que a lê?” ou “Pode essa mesma forma indicar que aquele que a criou vive efetivamente a moral ali pregada?”. Digo-lhe: — Não há garantias, prezado leitor. Talvez nenhuma resposta positiva possa ser dada, pois poesia e vida já não se misturam, afundadas que estão sob a gigantesca montanha de escombros de um mundo em que política e publicidade atuam como verdadeiras âncoras de um atraso inominável. Conferir se de fato este ou aquele poeta ou leitor está de acordo com a cantada perfeição da forma é secundário, mas essa perfeição não deixa de suscitar interesse, pois aponta para a possibilidade de que haja uma trajetória a ser percorrida, de que o que está não necessariamente é. A recusa ao “lance santo” (versos 5 e 6) é também de fundamental importância, pois elimina a redenção pela fé, além de reduzi-la ao ponto zero de simples mito (no mau sentido). A religião, ou melhor no caso de Cabral, o catolicismo, já não ajuda o homem a dar conta de sua miséria; a ladainha dominical é mesmo simples ladainha, discurso decorado e tosco, discurso-casca, discurso-película, proferido em geral por quem mais não faz do que reproduzir por reproduzir, como fazem os psitacídeos.
Sabe-se que toda a obra de João Cabral está impregnada de uma característica que lhe é muito peculiar: o extremo cuidado com a forma, com a palavra medida e certa, com a negação da emoção fácil e de incentivos imediatos de ordem política. É como se a poesia devesse questionar-se a si própria, perguntando a que veio. Nesse quesito, Cabral é único; sua obra talvez seja mesmo a mais enxuta dos poetas brasileiros. Cabe perguntar se essa organização extremada, se essa quase obsessão com a forma indica alguma intenção de cunho filosófico.
Um dos argumentos do grande crítico paraense Benedito Nunes (no texto João Cabral: filosofia e poesia) é o de que as relações entre poesia e filosofia são sempre transversais; nunca diretas. Com a poesia crítica de João Cabral de Melo Neto, contrária a todo êxtase, a toda inspiração e ao irracional, tais relações seriam ainda mais transversais, ou seja, os pontos de contato seriam ainda mais esparsos, mais espaçados. Segundo tal perspectiva, o componente epistemológico da filosofia só muito remotamente interessaria ao componente criativo da poesia, e vice-versa. Mas tal separação, para além do que indica Benedito Nunes, talvez seja apenas rigorosamente formal: tanto a poesia quanto a filosofia perscrutam o mundo, o homem e a relação entre ambos.
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Poesia e filosofia se diferenciam apenas em forma. A essência é a mesma: o espantar-se com o mundo e o indagá-lo. E daí que são as coisas mais necessárias a nós: mantêm-nos os olhos limpos, desacostumados, sensíveis. Sem elas, corremos o risco de perder a consciência do que ainda é fenômeno humano.
Não faço objeção alguma ao que está dito… Apenas uma ressalva: pena que os poetas e os filósofos de hoje(dos últimos 40 ou 50 anos) não sejam grande coisa, o que faz com que tenhamos de voltar ao passado sempre. Longa vida aos livros, portanto.
Seu trabalho é maravilhoso, Vinícius, e nos seduz a incursionar mais pela obra desse poeta, para mim, tão intrigante.
Obrigado, Carlos! Um abraço.