Escrevo também para incautos. Por isso, alerto: o que está entre aspas simples, acima, é título de um poema. O que está entre aspas duplas é título de um ensaio de Merquior. O adjetivo que acrescento ao título do ensaio deste, por sua vez, é explicação sintética do meu interesse pela obra de um e de outro. Além disso, faz pouco, em 7 de agosto, Antonio Cicero escreveu texto sobre o poema na Folha de São Paulo, publicando-o também em seu site.
Jamais havia lido “A máquina do mundo” com perspicácia antes de ler o ensaio de Merquior (escrito originalmente em 1965, e publicado no livro “Razão do poema” [Topbooks, 1996]). Parecia-me um poema longo demais, com aqueles tercetos sinuosos, que se estendiam por linhas e linhas até chegar ao ponto, até fechar um período. Caía sobre mim a escuridão da preguiça, mais do que a escuridão reveladora de que trata o poeta. Além disso, mente sintática, eu não me deixava levar por aqueles enjambements. Sim: não cavalgava. Era mais uma cavalgadura, como são, aliás, os leitores de hoje. E de ontem. Um dia, porém, o crítico vem e nos dá as rédeas e a sela. Dá-nos até um chicote. E a mutação ocorre.
O papel do crítico, não os críticos dos jornais de hoje, que já nem os há (A. Cicero, uma exceção), é também o de esclarecer, o de dialogar com o leitor da fonte primária, da obra analisada. Para o leitor de poemas, isso é fundamental. É claro que não me refiro ao leitor mediano de poemas, que busca na poesia o belo fácil e digerível. Não me refiro ao leitor que busca flores, passarinhos, estrelas e alegria fácil, que confunde poesia com diversão de domingo. Refiro-me, sim, ao leitor que na poesia vê e compreende o acesso ao conhecimento que ela proporciona. A palavra certa, não descartável. O encadeamento lógico. Não (só) o folguedo, mas a seriedade. Sobre o poema de Drummond, sobre o poeta Drummond, deve bastar, como síntese que sustenta esse meu breve argumento, um trecho da crítica de Merquior: “[…] fugidio poeta cuja meditação sobre a existência resume dolorida a forte inclinação para o nada, para a fria quietude de uma terra nua e deserta”. Não há, repito, em “A máquina do mundo”, flores ou passarinhos, não há estrelas ou beijinhos. Não há sorriso fácil. Não há, tampouco, interesse pelos fatos do cotidiano (“Les événements m’ennuient”, epígrafe de Valéry, não por acaso está em “Claro Enigma”, livro em que se insere o poema analisado). Diz-se não à gratuidade da luz, mergulha-se na desolação do escuro.
Merquior, fino crítico que é, traz à baila o Canto X, 80 dos Lusíadas. Lá, para dizer o mínimo, flagramos a expressão que dá nome ao poema de Drummond; lá, também, já está a impotência do engenho humano, a que o poeta mineiro se resigna – e que o português lamenta. Os 96 versos de “A máquina do mundo” exigem silêncio e maturidade. Não é poema para ser lido em menos de uma hora, nem para ser relido poucas vezes. Seu efeito pode ser – alerto – desagradável. Mas trata-se de um desagradar que ensina. E isso deveria bastar.
A seguir, durante o mês de setembro, uma análise do poema. O texto abaixo está sendo produzido aos poucos e não está revisado.
Comecemos a análise pelos 12 primeiros versos, em azul, abaixo. Nota-se facilmente que o eu-lírico ou o poeta (para a distinção, ou indistinção, entre os dois termos, ver minha análise de poema de Alberto Caeiro aqui mesmo neste site) dá início ao poema com uma conjunção aditiva. Ora, qualquer pessoa com o mínimo de bom senso (são poucas) já percebe que esse “e” já coordena, já adiciona, já liga algo a alguma coisa. Mas o que seriam esse algo e essa alguma coisa? Como antes do “E” não há nada (pelo menos não há nada escrito), fica evidente que a ligação é com a interioridade, até então não-expressa em palavras, de quem fala. E quem fala, percebe-se, está a rememorar, a palmilhar, o passado, mais especificamente o passado pedregoso de uma estrada em Minas. E esse palmilhar, percebam, é vagaroso. Disso, digo eu brevemente, tratam os dois primeiros versos. Passemos ao terceiro e ao quarto, que falam de um sino rouco, que ao fecho da tarde, badala, misturando-se ao som pausado e seco dos sapatos de quem caminha. Vejam bem: caminha. Sim, porque até o momento o rememorar, o palmilhar, da estrada podia ser interpretado como algo somente metafórico, o que de fato não condiz com o que vem a seguir. Efetivamente o poeta declara estar além da mera remissão metafórica. Ele narra. Ele diz estar caminhando. Obviamente, no nível discursivo, todo esse poema é um fingir, é uma memória, como bem atesta o seu “como se” inicial, disfarçado de “e como” (verso 1) seguido de um subjuntivo passado (em outras palavras: “e como eu palmilhasse” equivale efetivamente a “e como se eu palmilhasse”). A declaração de movimento, os sapatos a produzirem seu som pela estrada pedregosa, o agouro do sino, são elementos que colocam o leitor em um estado diferente diante do poema. O leitor não mais somente contempla um texto, uma metáfora poética barata, que até seu colega de segundo grau sabia fazer. Contempla, isto sim, a imagem de um homem a caminhar narrada em palavras. É preciso contudo analisar em minúcia o que é esse caminhar e o que são as palavras que o dizem. Pois bem, para que uma simples imagem de um homem a caminhar por entre pedras em uma estrada se torne uma imagem poética, há-de se ter algum refinamento. Refinamento ao escrever, é claro. E refinamento ao ler, algo que nem todos têm, e pouco passível de ser ensinado. Sim, todos sabem ler, mas, mesmo aquele que lê e compreende bem o noticiário semanal, o livro de estatística ou de cálculo e até mesmo aquele que lê e compreende bem suas filosofias, esses podem não saber ler poesia. Porque não foram feitos para ela. Porque foram feitos para os números. Porque foram feitos para o rasinho do aqui e agora. Ou seja: se a imagem poética não se instaura na cabeça de quem lê, mesmo depois de muito esforço, não há mestre que destrave tal atravancamento. Não se trata de boçalidade. Trata-se de aptidão. E é por ela que definimos nossos amigos, nossas afinidades. Às vezes, porém, felizmente, até mesmo um engenheiro saberá ler poesias. Dito isso, volto ao verso 5, no ponto da cesura. Continua o poeta no como se lingüístico do como se poético, a enumerar imagens: agora nos fala de aves de formas pretas que pairam em um céu de chumbo, de aves que se diluem na escuridão maior. Paremos aqui. “Escuridão maior” merece atenção. Em tempos como os nossos, de promessas de céus claros e límpidos, em tempos de religião aeróbica, de pastores bem treinados e eloqüentes a apascentar um rebanho inerme de homens ávidos por paz de espírito coroada de dinheiro, como é o Brasil de hoje, termos, em tempo nem tão distante, um Drummond falando de escuridão maior… Chega a ser um alívio, um desplante, um bálsamo. Penso: meu Deus (sic), há (havia) reflexão, nem tudo são Rossis e Malafaias. A escuridão maior vem dos montes, vem de cima, portanto, mas vem também do próprio ser do poeta, desenganado. Ora, não há nada mais humilde e terno do que isso: um poeta da grandeza de Drummond a admitir e demonstrar sua descrença, sua impossibilidade de crer. Eis uma opinião qualificada: a de um grande poeta desenganado. Há poetas que fazem isso, que demonstram seu desengano. Mas não com essa força. No Brasil de hoje, por exemplo, o poeta A. Cicero (que me perdoe a franqueza) o faz muito melhor pela via da razão. Drummond equipara a escuridão dos montes (a natural, que é dada gratuitamente) à sua própria, que é trabalhada e racional. Assim, a força do negrume é, definitivamente, outra, pois sintética, no sentido comum do termo. Os nove primeiros versos encerram um, digamos, primeiro estágio do poema, já que o décimo institui uma peripécia (salve, Aristóteles), uma virada. É nele que se entreabre a máquina do mundo, esse querer fantasioso do homem ainda não iluminado. (Vinicius, em 17 e 18 de setembro de 2010. To be continued…).
1 E como eu palmilhasse vagamente 2 uma estrada de Minas, pedregosa, 3 e no fecho da tarde um sino rouco / 4 se misturasse ao som de meus sapatos 5 que era pausado e seco; e aves pairassem 6 no céu de chumbo, e suas formas pretas / 7 lentamente se fossem diluindo 8 na escuridão maior, vinda dos montes 9 e de meu próprio ser desenganado, / 10 a máquina do mundo se entreabriu 11 para quem de a romper já se esquivava 12 e só de o ter pensado se carpia. / Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável / pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar / toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. / Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera / e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos, / convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas, / assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha, / a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: “O que procuraste em ti ou fora de / teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo, / olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética, / essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo / se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste… vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.” / As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge / distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos / e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber / no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar, na estranha ordem geométrica de tudo, / e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos à verdade: / e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa, / tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana. / Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, / a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra; / como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face / que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, / passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes / em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo, / baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. / A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, / se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. /